Dia desses, um caminhão de mudança parou a rua na Cidade Baixa. Ele grande, a rua estreita, carros estacionados dos dois lados. Só aí já havia elementos o bastante para o caos. Ainda por cima, chovia. Não a chuva da outra semana, aquela que arrastou a cidade com ela, essa era uma chuva das ditas de molhar bobo. Definição um tanto injusta com quem de repente se vê na intempérie sem guarda-chuva e sem outra opção que não a de se molhar feito um bobo.
Dentro do Uber, o motorista deitou a cabeça sobre o volante por um tempo tão longo que pensei: deu ruim. Tem um médico no recinto? Não tem, não era Uber Juntos, só tinha eu ali. Felizmente, após minutos imóvel, o moço se recompôs. É o segundo caminhão de mudança que eu pego hoje, ele disse. O serviço fraquíssimo, poucas corridas o dia inteiro e dois caminhões de mudança.
Uma fila já havia se formado atrás de nós, acabando com qualquer chance de uma fuga à ré. Em geral os imprevistos pegam a gente desprevenida, o celular com 3% de bateria e nada para ler. Era o meu caso. O moço perguntou se podia ligar o rádio, claro, pelo menos um não fica ouvindo a respiração do outro. Ele sintonizou em uma emissora que toca músicas de outros tempos, quais sejam, e desligou o carro. O caminhão de mudança já estava vazio, restava apenas um sofá que três rapazes tentavam baixar.
E tentavam. E tentavam. E tentavam.
Enquanto os três responsáveis por levar uma casa inteira nas costas experimentavam diferentes jeitos de descarregar um sofá, todos inúteis, outros móveis esperavam sob a chuva, na calçada. A empresa, com todo respeito, parecia meio marca-diabo. Caímos em uma arapuca dessas na nossa última mudança, o encarregado apareceu todo pimpão para orçar e, na hora do vamos ver, trouxe uma rapaziada que parecia nunca ter segurado um mochinho na vida. Foi um desastre, tanto pelo que foi quebrado, quanto pelo que se extraviou.
Enfim percebendo que não teriam sucesso, os rapazes chamaram o motorista para ajudar. Era um senhor que deveria estar em casa, aposentado, há muito tempo. O quarteto seguiu na luta inglória para descarregar o sofá. Se houvesse um placar eletrônico na rua, estaria assim: Sofá 100 x 0 Quatro Cavaleiros do Apocalipse.
As buzinas começaram tão mansamente quanto possível, em se tratando delas. Já reparou que buzina é tipo bocejo, tem efeito contagiante? Logo a coisa virou uma algazarra. O moço do Uber me perguntou se eu achava que ele devia ajudar. Para sair daqui um dia, acho que sim. Já eu não me animei a colaborar com a empreitada.
A dona da casa, certamente estranhando a demora, desceu e viu seus outros móveis lavados de chuva. Essa mesa estraga, olha o estado da minha poltrona, deixaram meu aparador molhar, vocês são loucos?
Não, eram só quatro homens cansados e vencidos por um sofá, que acabou descarregado com a ajuda do moço do Uber. O motorista correu para movimentar o estropício que atravancava a rua e os três rapazes enfim levaram o sofá para dentro – abaixo de descomposturas da mulher.
Até chegar ao meu destino, o moço do Uber não parou de repetir: que dia. Que dia.
Eram três da tarde e a rádio das músicas de outrora tocava aquela da Adele, Set Fire To The Rain. Paguei a corrida com uma merecida gorjeta a mais, dei cinco estrelas para o moço e fui embora na chuva.