Estava eu arrumando a cozinha — sem a menor vontade e por pura necessidade, já que ela não se arruma sozinha — e pensando na redação do Enem sobre o trabalho invisível das mulheres. É provável que o tema tenha sido mais indecifrável para os candidatos homens do que algo como "ligações covalentes polares presentes no amido".
A pergunta de milhões é: quantos já teriam percebido, até o momento da prova, que a limpeza, o alimento, o apoio, o cuidado, enfim, são tarefas herdadas pelas mulheres e aceitas por elas? Tanto que ninguém discute isso dentro de casa. Sempre foi assim.
Alguns dos companheiros da gente até têm essa noção, o que não necessariamente se traduz em colaboração. Também é muito comum que se poupe os filhos de ajudar, os coitados já têm tanta coisa para fazer, por exemplo, estudar e aproveitar a vida.
As opiniões mais indignadas que li sobre o tema do Enem vieram, justamente, dos candidatos mais jovens, para quem discorrer sobre "Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil" soou foi grego.
Ora, invisibilidade. Ora, trabalho de cuidado. Ora, mulher.
Tomara que algumas das redações sejam compartilhadas — preservando-se, claro, o anonimato dos autores. Só para que se comprove o tamanho do desconhecimento da turma sobre o sempre desvalorizado, diminuído e desprestigiado trabalho de cuidados das mulheres dentro de casa.
E é aí que entra o pano de prato.
Enquanto arrumava a cozinha sem a menor vontade, peguei o paninho já encharcado, pedindo para ser substituído. Um peixinho muito do mal desenhado, em um fundo do mar que tinha até margaridas e rosas, me olhava com uma mensagem de otimismo: o futuro está sempre nas nossas mãos. Isso lembrado por um peixe que, a qualquer momento, pode ser pescado. E que sequer tem mãos.
Então me dei conta de que o pano de prato motivacional deve ter surgido para ser uma palavra de esperança no oceano de descaso com o trabalho doméstico. Eu na cozinha, me arrastando para terminar a tarefa e o peixe lá, como um coach a me incentivar. O futuro está em suas mãos e as panelas, também. Não pare, ainda tem a roupa para pendurar.
São muitas as mensagens construtivas dos panos de prato da minha gaveta. Não deixe para amanhã a louça que você pode lavar hoje. Faça tudo com amor. Louça primeiro, DR depois. Jesus tem grandes planos para você. Cozinha não é serviço, é amor. Se não puder fazer tudo, faça tudo o que puder. São muitas e muitas mensagens, uma para cada ocasião ou problema. Talvez os panos de prato estejam cada vez mais fininhos para a gente ter que usar vários de cada vez, e receber uma overdose de positividade enquanto rala.
Porque uma coisa é certa. O futuro a Deus pertence, mas a louça é minha. Com licença que a pia me espera.