Esses dias vi um post sobre bloquear e cancelar pessoas nos anos 1980. Tratava-se apenas de cortar a cabeça dos desafetos nas fotografias analógicas, reveladas em papel do jeito que saíam, sem as repetições infinitas e os filtros de hoje.
Quem vive em tempos de Instagram não imagina o ritual para uma foto analógica ficar boa. Pudera, era uma oportunidade única, um clique que precisava pegar todos no seu melhor momento, de preferência rindo e de olhos abertos. Claro que era impossível.
Vendo fotografias guardadas em uma caixa de plástico para resistir à umidade, aos cupins e aos anos, constato que tenho um dossiê de fotos horrendas capaz de manchar a reputação de muita gente. Não fosse eu minimamente decente, estaria agora chantageando parentes, colegas, escritores e até algumas autodenominadas figuras públicas.
Ora, figuras públicas. Em vez de dizer que apito toca, a pessoa se apresenta nas redes sociais como “figura pública”. Faz sentido numa época em que o desejo de ser famoso vem antes de se pensar em alguma coisa relevante para alcançar a fama.
Talvez seja só má vontade minha. Ou então não me adaptei à época.
Voltando às fotos analógicas, uma das melhores que encontrei é a de uma festa de casamento, minha família à mesa e os noivos atrás. Meus pais transmitiram aos filhos o DNA de não saber posar, então cada um de nós olha para alguma coisa, qualquer coisa, menos a câmera: o prato, o lado, o chão, o garfo. Meu irmão pequeno, com cara de susto, olha de soslaio – ainda se olha de soslaio? – para o que deve ser a materialização do tinhoso a poucos passos de nós. O noivo saiu de olhos fechados e a noiva, ah, a noiva, a cara fechada e até mesmo irada dela só pode significar que não queria nos convidar. Ou estaria casando obrigada?
Não faço ideia de quem seja aquele casal, mas desejo de coração que tenham sido felizes. A foto não prometia muito.
Outro clássico eram os olhos vermelhos. Às vezes um grupo inteiro saía milagrosamente bem na foto, só que todos com os olhos vermelhos. Tudo porque a luz do flash, ao penetrar no fundo da retina, deixava em evidência os vasinhos sanguíneos das pupilas. Isso eu só fui saber ontem, ao pesquisar sobre o porquê dos olhos vermelhos nas fotos. Todos esses anos achando que fotografias analógicas mostravam nosso lado demoníaco. Decepção.
Decepção também era o sentimento quando a gente buscava as fotos reveladas, o que demorava muito. Ninguém aguentava chegar em casa, já ia abrindo o envelope na loja mesmo. Claro que os fotógrafos de talento não passavam por isso, mas para os comuns dos mortais o resultado era: falta de foco, cabeças cortadas, caretas, um que se mexeu na última hora, outro que fez guampinha em alguém – mas isso ainda se faz –, pupilas vermelhas.
O jeito era comprar outro filme, 135 –100 ASA – 36 poses – colorido, e tentar mais 36 vezes.
Com todos os seus poréns, as fotos reveladas em papel ficavam para sempre. As que tenho, guardadas na caixa de plástico, vêm desde o tempo dos meus avós. Alguns dos fotografados que moram naquela caixa não contam com a minha estima, mas não teria coragem de rasgar a cabeça e cancelá-los das minhas lembranças. Até porque só cancelo os mal-educados e outros desagradáveis que volta e meia me aparecem no mundo digital. No real, também.
Vontade que dá é a de rasgar os tanques, as armas, as crianças machucadas, os prédios no chão, as mães chorando nas fotografias de guerra. Mas seria um devaneio, não um bloqueio. Melhor desenhar um bigode em uma lambisgoia do jardim de infância. Era ela que o Júnior Paulo, o menino de quem eu gostava, amava. Isso e depois seguir visitando o meu passado em sépia.