A análise política da eleição argentina a gente deixa para a Rosane de Oliveira, que esteve lá e contou o que viu para os leitores. Aqui vão só impressões de quem viveu intensamente o domingo, 19 de novembro, dia em que os hermanos disseram seu não à crise econômica de agora — que é a crise econômica de sempre — com paixão, drama e um toque final de tragicomédia.
No sábado, 18 de novembro, até parecia que nada de diferente estava acontecendo em Buenos Aires. O sol brilhava para tirar nosso mofo da chuva que não parou de cair a semana inteira em Porto Alegre. Na saída do Aeroparque, os motoristas de táxi anunciavam que se podia pagar a corrida em qualquer moeda, pesos, dólares, euros, menos tarjeta. O cartão de crédito está em baixa nesses tempos de bancos mais em baixa ainda. Em seu livro ¿Qué Pasa, Argentina?, a jornalista Janaína Figueiredo já havia alertado para este — com o perdão do trocadilho — descrédito do sistema financeiro oficial.
O motorista mostrou o porta-luvas abarrotado de pesos argentinos e tentou de todas as maneiras trocar os nossos dólares, puxando cotações e fazendo contas no celular. É preciso andar com uma sacola para carregar os pesos argentinos. Dependendo do câmbio do dia, 1 dólar pode valer mais de mil pesos.
Nas ruas, nada de cartazes, santinhos pelo chão, as caras de Milei e Massa em postes e paredes. Também não vimos eleitores com camisetas, propaganda de partidos, gente discutindo, nada. Nem sequer policiamento ostensivo havia diante da Casa Rosada. Era uma véspera de eleição completamente tranquila, com muitas pessoas nos parques e muitos, muitos velhos com seus cachorros caminhando pelas ruas. Desculpe se não falo idosos, é que detesto essa palavra.
Os restaurantes não podiam vender bebidas alcoólicas, de jeito que dormimos sóbrios e exaustos. Na manhã seguinte, fomos logo depois que Milei votou no bairro de Almagro para o bunker dele, o Hotel Libertador, na avenida Córdoba, a uma quadra das famosas Galerias Pacífico. Fora muitas vans da imprensa do mundo todo, apenas um ou outro gato pingado — ou deveria dizer goteado?
No bunker de Sergio Massa, o Complejo C de ArteMídia, no bairro de Chacarita, tapumes escondiam a festa sendo preparada. Juro que pensei nas caixas de som do Ronaldinho Gaúcho.
Depois de almoçar, voltamos ao bunker de Sergio Massa e a situação já era outra. Muita gente estava concentrada com bandeiras da Argentina e de sindicatos e organizações. Em muitas delas, Evita Perón pairava acima do povo.
Os eleitores de Massa trouxeram sua esperança das periferias de Buenos Aires. A vitória de Milei poderia significar, senão o fim, o corte nos programas sociais que ainda colocam a comida na mesa dos desempregados e dos falidos. Entre os mais animados, uma grande torcida do Boca Juniors cantava as músicas que Grêmio e Inter importaram para seus estádios. Vendedores de churrasquinho tomavam conta da avenida. Nem no Acampamento Farroupilha se viu tanta carne assando.
Voltamos ao bunker de Milei no fim da tarde. Impressionante a quantidade de jovens eleitores. Faz sentido quando se pensa que as ameaças aos benefícios sociais não têm efeito na vida deles. Ou até têm, para os que ainda dependem de suas famílias. Velhos e pessoas com mais de 50 anos: pouquíssimos. Ouso mesmo dizer que não os vi.
A multidão começou a chegar tão logo os primeiros resultados foram divulgados. A Argentina elegeu um presidente que empunha uma motosserra, que dorme na mesma cama de seus quatro mastins clonados a partir do original, Conan — com quem Milei se comunica por telepatia —, e que, entre muitas outras atrocidades, promete fechar o principal instituto de fomento ao cinema argentino. Fãs de Ricardo Darín, preparem-se para tempos duros.
A maldição das caixas de som do Ronaldinho não falha.