Estive há alguns dias em um evento na Defensoria Pública do Estado, instituição que presta um trabalho essencial, a assistência jurídica a pessoas que não apenas não têm condições de pagar pelos serviços de um advogado. Na maioria das vezes, essas pessoas não têm nada.
A Defensoria Pública é o último recurso para que tenham justiça.
Os casos que os defensores atendem misturam o desconsolo e a tragédia com notas de esperança, algum humor – quase sempre involuntário – e, claro, a humanidade em todas as suas manifestações. Defensoras e defensores, para além das funções do Direito, precisam de muita empatia para tratar de questões tão distantes da realidade deles mesmos. Uma defensora deixou a pergunta: como é possível se colocar no lugar dos tão desfavorecidos sendo, no fim das contas, uma elite?
A resposta, acho eu, é gostar de gente. Só assim para demonstrar com o público essa mesma humanidade a que os defensores são submetidos em suas longas jornadas. São tantos e tantos casos que muitos profissionais também são escritores, alguns com vários livros publicados. No evento estavam sendo lançados Quando a Letra da Lei Não É Fria, de Menchik Jr., e a coletânea Escuta com Afeto – Histórias de Humanidade pelos Defensores Públicos.
Os casos que os defensores atendem misturam o desconsolo e a tragédia com notas de esperança, algum humor – quase sempre involuntário – e, claro, a humanidade em todas as suas manifestações.
CLAUDIA TAJES
Dois trechos que conto aqui podem parecer coisa de novela ou filme, mas não. São somente a vida.
•••
Em um atendimento no presídio, o defensor foi abordado por um preso que tinha um pedido. Estelionatário e primário, sem ser ligado a nenhuma facção, ele passou a ser achacado pelos “organizados” e cobrado por tudo, do lugar na cela ao papel higiênico. A dívida cresceu de um jeito tal que, em um dia de visita, os “organizados” levaram a mulher do homem para algum lugar e a estupraram. O pedido do preso: que o defensor impedisse a entrada da mulher e das filhas dele para sempre nos dias de visita, para que elas não pagassem pelas dívidas que, ele sabia, não parariam de crescer. O defensor conseguiu.
•••
Depois de pedir providências contra a vizinha, que não a cumprimentava, e o filho, que não a visitava – defensor também precisa ser terapeuta –, a senhorinha de 80 anos contou que o banco lhe comia mais de 30% da aposentadoria descontando empréstimos que ela ia fazendo no caixa, sempre que um promotor oferecia. Com a renda comprometida, não sobrava dinheiro para remédios, comida, para nada.
Ele conseguiu uma liminar para impedir os descontos e a velhinha agradeceu com o melhor bolo do mundo e uma imitação de camisa Ralph Lauren verde. Defensores não podem aceitar presentes, mas como recusar? O banco continuou cobrando indevidamente da senhora, o filho continuou sem vê-la, ela continuou indo à Defensoria para chorar os problemas, levar uma fatia de bolo e abraçar o defensor – que não podia estreitar a relação por razões éticas, mas que ficava cada vez mais envolvido com a situação. Até que ela parou de aparecer e ele soube, meses depois, que a senhora havia morrido sozinha em casa, sendo encontrada dias depois por uma vizinha. O autor termina assim: “Dona Adélia morreu em casa, sozinha, sentada. Via TV? Costurava? Esperava o bolo quente ficar pronto? Espero que tenha partido em paz. Suas dívidas viraram problema de ninguém. Sua vizinha em breve terá outro vizinho para, quem sabe, a ele deixar de fazer caras feias. O banco contabiliza mais um passivo.”
•••
Flávia, mulher negra, mãe solo, com o companheiro preso, confiou as filhas aos cuidados de uma vizinha para trabalhar por alguns dias em uma cidade próxima. Pagou R$ 50. Na sua volta, a vizinha não quis entregar a bebê de três meses.
Já havia, inclusive, ajuizado ação de guarda da criança para colocá-la com família substituta. No caso, ela mesma. Com a contestação em mãos, a preocupação dos defensores era que o caso caísse na pilha, ou que o juiz julgasse que as condições financeiras da vizinha atendiam melhor as necessidades da criança.
Quando a situação se resolveu a favor da mãe graças à atuação da Defensoria, veio o plot twist que é bom no cinema, não na vida: o Conselho Tutelar tirou a bebê de Flávia. “Mais um processo nascia e uma certeza crescia: não há dignidade humana se não tivermos acesso à Justiça”.