— Sabe, doutora, quando eu entro no supermercado e vejo aqueles panetones todos, os espumantes empilhados na entrada, me dá um aperto. Se eu não sair do súper na hora, vira pânico.
— Panetone tem o ano inteiro, de uns tempos pra cá. Espumante, nem se fala.
— Eu sei, mas em abril eu não fico aterrorizada se vejo um chocotone recheado com avelãs e coberto com amendoim glaceado, seja o que for. Porque não tem significado, entende? Mas lá por outubro, quando eles passam pra ponta da gôndola, aí dispara um gatilho. O Natal chegou.
— Lembra de algum fato na infância que possa ter desencadeado esse medo?
— Imagina, eu adorava o Natal. Nunca ganhava bem o que eu queria, eram muitos filhos em casa, só o pai trabalhava fora, mas vinha presente das tias, dos avós. E que comilança. Eu comia de passar mal. Daí levantava da mesa e ia brincar com os primos até tarde.
— Nenhum trauma?
— Eu nunca gostei de peru, mas pra trauma isso não serve. Também não me faltou comida, nem presente. Ah, uma vez eu pedi a Susi espanhola e ganhei a mexicana, mas até que gostei.
— Pergunto pra gente tentar trazer do passado as raízes da tua fobia.
— Não tem a ver com a minha infância, doutora. Eu sei direitinho quando começou. Os gêmeos nasceram em novembro e a família resolveu se reunir no meu apartamento pra nos deixar mais à vontade. Aí o caldo entornou.
Eu tinha que arrumar a casa pra receber a parentada e ainda fiquei de fazer a sobremesa, que precisava gelar. Mas vai explicar isso pra dois nenês berrando ao mesmo tempo.
— Vocês brigaram, teve algum evento marcante?
— Teve eu arrumando a casa, quer dizer, tentando arrumar entre uma mamada e outra. Entre uma troca de fraldas e outra. As pessoas esquecem que, a cada mamada, corresponde uma fralda cheia em seguidinha. Eu me sentia o Sísifo empurrando a pedra, lembra? Quando chegava lá em cima, a pedra rolava e começava tudo outra vez.
— Não é a imagem mais bonita da maternidade, mas no puerpério...
— Deixa o puerpério fora disso. Eu tinha que arrumar a casa pra receber a parentada e ainda fiquei de fazer a sobremesa, que precisava gelar. Mas vai explicar isso pra dois nenês berrando ao mesmo tempo.
— Podia ter chamado alguém pra ajudar. Uma diarista, uma das tuas irmãs.
— Todos estavam ocupados. E o meu marido precisava trabalhar, ele era autônomo.
— Não é mais?
— Autônomo, é. Não é mais marido.
— Como terminou a noite?
— Todo mundo foi embora e o meu então marido e eu ficamos nos revezando entre lavar toneladas de louça e lavar a bunda dos gêmeos depois que eles mamavam.
— Na minha análise, por mais difícil que tenha sido, tudo isso parece pouco pra justificar a tua fobia.
— Foi só a primeira vez. De lá pra cá teve sempre o estresse de comprar presente pras crianças, a senhora não imagina o preço do carro do Homem-Aranha, e depois pensar no cardápio, cozinhar, arrumar a casa, lavar toda a louça e ainda dar um jeito na bagunça, tudo isso com as crianças brigando. Tive mais dois meninos além dos gêmeos.
— Eu sei que, na hora, é difícil, mas tenta pensar que logo os teus filhos estarão maiores e tudo vai ficar menos pesado, tanto emocional quanto financeiramente. Vocês poderão curtir o Natal juntos, sem que um panetone desencadeie um ataque de pânico. Qual a idade dos teus filhos hoje?
— O Lipe e o Gabi têm 32. O Dani tem 30 e o Rafa, 28.
— ...
— O que a senhora acha?
— Eu te receitei 20mg na vez passada, né? Vamos aumentar pra 60. Depois das festas a gente vê como fica.
— Feliz Natal pra mim, doutora.
Te vejo em 2022.