Se alguém consegue não olhar os vídeos da bebê Alice repetindo palavras difíceis, é porque tem um coração de gelo. O que não é difícil em Porto Alegre, sensação térmica de 4°C enquanto escrevo esta coluna.
É quase certo que você conhece a menininha que começou a falar com um ano e um mês e agora é sucesso na internet repetindo palavras como esquistossomose, paralelepípedo e otorrinolaringologista. Vale a pena ver de novo no perfil do Instagram @morganasecco.
A mãe da Alice faz exatamente o contrário do que eu fazia com o meu filho, que era incentivá-lo a repetir as palavras que ele falava errado. Popótero para helicóptero, pocilial para policial, coisas assim que, sem Instagram para registrar, ficaram armazenadas na memória. A Alice repetindo palavras difíceis me despertou uma dúvida. Se os pais estimulassem seus pequenos a falar certo desde o iniciozinho, será que eles teriam mais apreço pela língua e não se tornariam aquele tipo de adulto que tem um vocabulário de básico para baixo, que escreve com muitas abreviações e, pior, que usa KKKKKK?
Cheguei ao verdadeiro tema da coluna, o KKKKKKKK.
Perdão, adeptos, mas se tem coisa que não me desce é essa representação de risada. Antes um rsrsrsrsrsrsrs do que um KKKKKKKK. O KKKKKKKK tem um ar de deboche, de escárnio. Melhor um clássico hahahahahaha, ou ainda o emoji de gargalhada – que, me dizem, ficou démodé por conta de um novo código que estabelece o que é e o que não é legal agora. Isso até sair o próximo código.
Consta que o KKKKKKKK seria uma corruptela de “quá quá quá”, “quiá quiá quiá” ou “cá cá cá”, onomatopeias de risadas que já eram usadas no tempo de José de Alencar. Machado de Assis usou, Monteiro Lobato, também. Mas o efeito seria o mesmo se os grandes autores sentassem o dedo na letra K e usassem o teclado para gargalhar loucamente?
Por exemplo, Gabriel García Márquez em Cem Anos de Solidão: “Entretanto, Remédios, a bela, teria dado um KKKKKKKK se tivesse sabido daquela precaução. Até o último instante em que esteve na Terra ignorou que o seu irreparável destino de fêmea perturbadora era uma desgraça cotidiana”.
Machado, em Dom Casmurro: “Às vezes dava por mim, sorrindo, um KKKKKKKK de satisfação, que desmentia a abominação do meu pecado”.
Dostoiévski, em Crime e Castigo: “’Eu aqui querendo me meter numa coisa dessas e com medo de bobagens!’, pensou ele, com um KKKKKKKK estranho”.
Melhor um clássico hahahahahaha, ou ainda o emoji de gargalhada – que, me dizem, ficou démodé por conta de um novo código que estabelece o que é e o que não é legal agora. Isso até sair o próximo código
Sem esquecer de Clarice, em A Paixão Segundo G.H.: “O inferno é a boca que morde e come a carne viva que tem sangue, e quem é comido uiva com o regozijo no olho: o inferno é a dor como gozo da matéria, e com o KKKKKKKK do gozo, as lágrimas escorrem de dor”.
Alice, a nenê que fala difícil, poderia achar essas observações absolutamente frívolas, insignificantes, dispensáveis. Mas aposto que, nos comentários, jamais usaria um KKKKKKKK.
Veremos daqui a alguns anos.
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