Não anda parecendo que o mundo entrou em uma máquina do tempo? Dependendo do discurso ou da cena, a impressão é a de que se andou algumas décadas para trás.
Programas de televisão que se parecem com os que a minha avó assistia. Alguns conceitos superados desde antes da minha infância, e olha que já tem mais de meio século de experiência neste corpo aqui. Milhões de pessoas de volta à pobreza. Florestas e reservas queimando como em eras pré-ecologia. Isso tudo fora um vírus que lembra pestes passadas.
Eita, 2020. Pelo menos, está quase terminando.
Umas das curiosidades demodê – se é possível chamar assim – dos últimos dias foi o lançamento de uma coleção de quarenta livros chamada Conta pra Mim. O objetivo é nobre: “um programa de leitura voltado a todas as famílias brasileiras, tendo por prioridade aquelas em condições de vulnerabilidade socioeconômica”.
A iniciativa é da Sealf, Secretaria de Alfabetização, vinculada ao MEC. Os livros são digitais e estão disponíveis para download gratuitamente.
Até aí, tudo lindo.
O curioso, se é possível chamar assim, é que os responsáveis pela coleção decidiram reescrever os contos de fadas, acreditando que as crianças do Brasil não estão preparadas para saber a verdade sobre Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e João e Maria.
Crianças que estão na frente da TV na hora de qualquer novela ou telejornal. Que conhecem videogames e internet. E que, se não tiverem acesso à internet, também não terão aos livros, já que eles são digitais.
Mas vamos à coleção lançada pelo Ministério da Educação. O ministro é terrivelmente religioso, como se sabe. Há poucos dias o presidente exultava: quando o Brasil imaginou que teríamos um pastor no MEC? Verdade, a gente sempre gostou de professores pensando a educação.
Há poucos dias o presidente exultava: quando o Brasil imaginou que teríamos um pastor no MEC? Verdade, a gente sempre gostou de professores pensando a educação
O idealizador da coleção Conta pra Mim segue os preceitos olavistas, que não merecem aparecer em uma leitura de fim de semana. E como essa corrente gosta de versões diferentes para fatos tão clássicos quanto a esfericidade da Terra, surgiram esses contos de fadastipo remix.
A mãe de João e Maria era tri boazinha e largou os filhos na floresta apenas para eles darem um passeio. Branca de Neve não beijou o príncipe, menina-moça não se atreve a isso. O Lobo Mau não foi morto pelo caçador, ele só caiu no rio e deve ter ido para a outra margem. E por aí vai.
Com tanta coisa urgente esperando, tanta demanda educacional acumulada por conta da pandemia, e o pessoal se preocupando com a vida sexual da Cinderela. Aí a gente lembra de Fadas no Divã, o livro que Diana e Mário Corso publicaram há alguns anos, e cai uma lágrima. Sério que isso está acontecendo?
O perigo dessas versões é, daqui a pouco, alguém decidir reescrever os livros de história para que as crianças nunca saibam, coitadinhas delas, sobre a escravidão, a tortura, a desigualdade e essas coisas todas que deixam o passado – e o presente – menos bonito. Daqui a pouco, inclusive, a cegonha voltará às aulas de educação sexual. Esquece, essa matéria já deve até estar fora do currículo.
Por via das dúvidas, é melhor continuar espalhando por aí a versão de Rapunzel que as nossas mães nos contaram. Mal não faz e ainda garante um pouco de fantasia.
A criançada merece.