Os primeiros dias do ano parecem com o tênis novo que a gente ganhava quando criança e, no início, mal corria, de medo de sujar ou estragar. O que dizer do desespero quando os colegas vinham em bando para batizar o tênis ainda brilhando? As marcas que ficavam na lona doíam mais do que os pisões - e olha que os pisões machucavam. Fora a incomodação com a mãe, tu não sabes cuidar das tuas coisas, guria? Com o passar dos dias, o tênis, incorporado à rotina, já não merecia atenção. Logo estava todo sujo e detonado. Igual ao ano.
Os primeiros dias do ano também se parecem com os cuidados que a gente tem com um novo amor. No começo, aquela palpitação, frio na barriga, pensamentos exclusivos para a criatura. A sensação de que vai ser uma maravilha até o fim. Aliás, que não vai ter fim. Mas, então, a vida de verdade dá um chute na porta com seus compromissos, responsabilidades, contas a pagar e desenganos. A diferença é que o amor, mesmo com tudo isso, pode continuar firme e forte. Já o ano, coitado, não resiste a tanta realidade. Não demora, está murchinho.
É muito tempo. Nem vem com outro ano do tipo tênis sujo, amor caidaço e planta borocoxô.
Os primeiros dias do ano são como uma planta que, assim que entra em casa, merece o melhor lugar da sala e nunca, mas nunca mesmo, fica sem água e sem luz. Daí a gente viaja e esquece de regar, ou chega uma poltrona bafo e, pelo bem da decoração, a planta é rebaixada para um canto mais escuro. Com o ano também é assim. Na emoção da virada, ainda sob o efeito dos fogos - sem barulho, por favor, para não assustar os bebês, os doentes e a cachorrada -, a gente acredita que tudo vai ser melhor. Porque, né? O ano que passou foi o ó do borogodó. O cramulhão chupando manga verde. Pior não pode ser. Você acha que pode? Não diz isso nem de brincadeira que ainda faltam 361 dias para 2021. É muito tempo. Nem vem com outro ano do tipo tênis sujo, amor caidaço e planta borocoxô.
Desta vez, tem que dar certo.
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A respeito da coluna em que falei da cirurgia que minha irmã fez pelo SUS, e na qual reforcei o apelo para que até quem não é usuário do sistema se cadastre nos postos de saúde, recebi este e-mail da dentista e sanitarista Ariane Borsa, que se dedica à atenção primária e trabalha no SUS por vocação e paixão. No momento em que o presidente vetou um projeto de lei que disponibilizava sangue, medicamentos e outros recursos necessários ao diagnóstico e tratamento de pacientes do SUS, parte do depoimento dela:
"Claudia, você usa, sim, o SUS. Você usa muito. Você e toda a população brasileira. A falta dessa compreensão é que tem sido tão prejudicial para o sistema, pois poucos defendem o investimento no SUS, poucos se sentem lesados com a falta de financiamento, com o congelamento nos investimentos no SUS. A lei 8.080 explica o que é esse sistema, e obviamente não vou destrinchá-la aqui, mas veja só, se você bebe água com segurança, se você come em restaurantes ou se compra alimentos no mercado ou na padaria, se você compra medicamentos, se não existem mais doenças circulantes (que lhe colocariam em risco), se você tem água potável e saneamento básico, se a tuberculose, a paralisia infantil, a "lepra" (hanseníase) já não assustam... Enfim, juro que, se você vive e circula no Brasil, você usa o SUS. O SUS não é só a consulta na Unidade de Saúde ou a cirurgia em um hospital público. O SUS faz vigilância, controle, fiscalização, participa da formulação de políticas presentes do dia a dia de TODOS os brasileiros, sem nenhuma exceção. Os transplantes são quase exclusivos do SUS, o controle da política de sangue e hemoderivados, a fiscalização de bebidas, água, alimentos para consumo humano, o controle das vacinas (e a imensa maioria da execução delas), as políticas de saúde do trabalhador, tratamento de HIV (todo), hepatites virais... O SUS, com suas falhas e imperfeições, em maior ou menor escala, defende nossa saúde de uma forma ampla e universal".