Desde o final de fevereiro, quem procura na internet trechos da série de comédia Servo do Povo, protagonizada pelo atual presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, encontra um aviso no canal oficial da produção no YouTube, escrito em inglês e russo: “Enquanto você assiste a este vídeo, o povo ucraniano está morrendo devido aos ataques russos. Pare com isso!”.
É curiosa, então, a corrida das plataformas de streaming em adquirir os direitos para a série, originalmente exibida entre 2015 e 2019 – aqui no Brasil, a primeira temporada chegou nos últimos dias tanto ao catálogo da HBO Max quanto ao da Netflix.
A retórica ucraniana, é verdade, é diferente hoje, quase três meses após o início da invasão russa: em um de seus pronunciamentos mais recentes, o próprio presidente Zelensky destacou a importância de não deixar o país cair em esquecimento no cenário internacional, à medida que o conflito se estende além do que a maioria dos analistas previu nos primeiros dias da guerra.
Ao mesmo tempo, cresce o espaço para o soft power, como mostrou a final do festival de música Eurovision deste ano, em que o continente europeu se mobilizou para dar o título, no último sábado, ao concorrente ucraniano, Kalush Orchestra.
– Nós estamos aqui para mostrar que a cultura e a música ucraniana existem – declarou o líder do grupo, Oleh Psiuk, na coletiva de imprensa após as semifinais, ao comentar a participação na competição em meio ao conflito.
Dentro deste contexto, a série Servo do Povo também pode ser vista como um lembrete não só de que a Ucrânia existe, mas que compartilha realidades muito similares à de qualquer outro país.
Sátira
De inquietantemente presciente a um marco cultural, não faltaram adjetivos na imprensa internacional nos últimos meses para descrever Servo do Povo, que vem sendo revisitada com interesse renovado por críticos e pelo público desde 24 de fevereiro.
Ainda que extensos, os adjetivos não são gratuitos. Lançada em um momento de grandes movimentações na Ucrânia, na ressaca dos eventos de 2014 – quando protestos massivos em Kiev, reprimidos violentamente pela polícia da capital, levaram à queda do então presidente Viktor Yanukovych e desencadearam a invasão da Crimeia e a guerra no leste do país –, a série é uma grande sátira à classe política ucraniana, que estaria mais preocupada em enriquecer do que em servir à nação. A dessatisfação dos cidadãos com tal realidade, na trama, os faz eleger para a presidência um simples professor de História, após um vídeo dele criticando a corrupção na Ucrânia viralizar.
Já não é novidade que quem interpreta o presidente ficcional, Vasily Petrovich Goloborodko, é o atual presidente ucraniano, Volodimir Zelensky. Enquanto na televisão a série foi um grande fenômeno, com a primeira temporada batendo recordes de audiência, no mundo real o sucesso foi o suficiente para eleger Zelensky como o sexto presidente do país. Uma estrela nacional bem antes de Servo do Povo, dentro do grupo de comédia Kvartal 95, o ator utilizou ativamente a persona televisiva para se lançar na política, inclusive nomeando o seu partido político com o título da série. A linha embaçada entre ficção e realidade não incomodou os ucranianos, que o elegeram com 73% dos votos em 2019, mas segue intrigando o resto do mundo.
O passado faz mais sentido após ver Vasily Petrovich em ação: o personagem de Zelensky é completamente despreparado para o cargo que foi eleito e mais ingênuo do que o recomendável; porém, dono de uma índole incorruptível e munido de boas intenções. Assim, ao longo da produção, ele entra em uma cruzada contra ministros, parlamentares e oligarcas corruptos, acostumados até então com grandes privilégios e nenhuma responsabilidade.
E, apesar de ser ambientada na Ucrânia, a série acaba se tornando bastante universal ao denunciar com ultraje governos que funcionam dentro de infinitos esquemas de suborno e nepotismo. Com um tom mais próximo de Ted Lasso do que de House of Cards, contudo, Servo do Povo abraça esse cenário com mais otimismo que realismo, apostando que é mais fácil Vasily transformar o sistema do que o sistema transformá-lo.
Confira o trailer de Servo do Povo