Do grande caixote pesado para a tela fina e portátil. A televisão ganhou cores, absorveu tecnologia, amplificou seu alcance e completa 70 anos de Brasil em 2020. A intenção de Assis Chateaubriand, responsável pela primeira transmissão nacional e empresário líder da TV Tupi, foi cumprida: conectar pessoas. Sete décadas depois, o país se encontra em programas, debate a respeito deles nas redes sociais e dialoga com apresentadores. Não bastasse isso, o mundo enfrenta uma pandemia que afeta também a grade de programação, proporcionando uma nova relação do público com a própria TV – muito mais instantânea e ágil.
Esse momento é diferente daquele 18 de setembro de 1950, quando apenas cerca de 200 aparelhos estavam ligados para acompanhar a primeira transmissão da PRF-3 Tupi (como foi batizada a emissora), às 17h. O show televisivo foi aberto pelo locutor Homero Silva, que estava acompanhado de estrelas do rádio como Hebe Camargo, Walter Foster, Lolita Rodrigues e Lima Duarte.
Preocupado em colocar o Brasil em um patamar comunicativo semelhante ao dos Estados Unidos, o próprio Chateaubriand participou daquele fato histórico com um discurso registrado em artigo de Laurindo Lalo Leal Filho, no livro TV Aos 50 – Criticando a Televisão Brasileira no seu Cinquentenário, com organização de Eugênio Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunicação da Universidade de São Paulo (ECA-SP). “Agora temos um sinal da mais subversiva máquina de influenciar a opinião pública – uma máquina que dará asas à fantasia mais caprichosa e poderá juntar os grupos humanos mais afastados”, disse Chateaubriand.
O retrato mais fiel do que acontecia naqueles tempos é o processo de socialização que a TV provocou: vizinhos que mal se conheciam passaram a ser amigos, porque, como era pequeno o número de aparelhos, o pessoal passou a se reunir para assistir. Eis o surgimento de uma expressão, até um pouco jocosa, do chamado “televizinho”.
BATISTA FILHO
Comunicador
A programação era totalmente ao vivo, o que foi diminuindo com a chegada do videotape. As primeiras duas décadas da TV foram marcadas pela amplificação do alcance das transmissões nas principais cidades do país. Já em termos de conteúdo, Bucci frisa que, naquela época, a programação era muito publicitária, “com pouca originalidade, e o jornalismo ainda muito fraco”.
— Não podemos esquecer, no entanto, que tivemos experiências estéticas importantes, como da TV Excelsior e da própria Tupi, com muita força da teledramaturgia já naquele primeiro momento, herdando muito o conteúdo proposta pelas radionovelas — destaca Bucci, em entrevista a GZH.
A mesma impressão foi vivida pelo radialista e jornalista João Batista de Melo Filho, o Batista Filho, o primeiro profissional de TV registrado no Rio Grande do Sul, na extinta TV Piratini, afiliada da rede Diários Associados. Por aqui, as transmissões iniciaram-se em 20 de dezembro de 1959, e os programas ao vivo, entre as 18h e a meia-noite, eram voltados para o público feminino, com desfiles de moda, culinária e atualizações do horóscopo. Na programação, destacavam-se também o noticiário e as reprises de filmes estrangeiros. As atrações mais aguardadas eram apresentadas no fim de semana, com gravações no estúdios gaúchos de cantores e entrevistados do eixo Rio-São Paulo. A própria Hebe Camargo, aos domingos, vinha ao Estado para participações especiais.
O aparelho também mediou mudanças sociais, recorda Batista Filho, hoje com 80 anos:
— O retrato mais fiel do que acontecia naqueles tempos é o processo de socialização que a TV provocou: vizinhos que mal se conheciam passaram a ser amigos, porque, como era pequeno o número de aparelhos, o pessoal passou a se reunir para assistir. Surgiu uma expressão, até um pouco jocosa, do chamado “televizinho”, o amigo para ver os programas.
É a televisão que termina o processo de unificação que existia no imaginário, de um reconhecimento de si mesmo com um país. Isso é uma marca nossa em relação a qualquer outro país. O Brasil tem o idioma que unifica, mas não lê as mesmas coisas, somos um país muito disperso. É pela TV que se constitui um espaço público constitucional no Brasil.
EUGÊNIO BUCCI
Jornalista e professor
De seu início até os dias de hoje, a publicidade, a teledramaturgia, o jornalismo e a música popular foram as vertentes que ajudaram na consolidação da TV dentro da casa de cada brasileiro, de acordo com Bucci. Mais do que isso, a televisão confere a imagem identitária do país como um todo.
— É a televisão que termina o processo de unificação que existia no imaginário, de um reconhecimento de si mesmo com um país. Isso é uma marca nossa em relação a qualquer outro país. O Brasil tem o idioma que unifica, mas não lê as mesmas coisas, somos um país muito disperso. É pela TV que se constitui um espaço público constitucional no Brasil, isso talvez seja o grande traço distintivo desse veículo — acredita Bucci.
Do televizinho às redes sociais
O censo mais recente do IBGE aponta a existência de 102,6 milhões de televisores no último trimestre de 2016 em todo o país. Dos 69,3 milhões de lares, apenas 2,8% (cerca de 1,9 milhão) não tinham TV em casa. Ao mesmo tempo, a internet já era utilizada por 79,1% dos lares do país, de acordo com o levantamento.
Com o aumento do uso da internet em todo o país, as plataformas de streaming ganharam público, até por sua facilidade para assistir ao conteúdo quando o usuário procura, sem a necessidade de acompanhar uma grade fixa. Esse crescimento entra em contraste, principalmente, com a quantidade de público que acompanha, sobretudo, a TV aberta.
Em agosto deste ano, a Netflix revelou que já soma 17 milhões de assinantes no Brasil, seu segundo principal mercado em todo o mundo. Em contraponto, o principal telejornal da TV Globo, Jornal Nacional, cravou 37 pontos somente na Grande São Paulo em março, segundo números divulgados pela Kantar Ibope. Um ponto equivale a 203 mil domicílios, dando um total de 7,5 milhões de espectadores em uma única edição do jornalístico e em uma única região do país.
Essa mesma edição do JN, no dia 19 de março, registrou uma média de audiência de 830 mil telespectadores por minuto na Grande Porto Alegre. Naquela data, o share domiciliar foi de 54,0 pontos, ou seja, mais da metade dos domicílios com TV ligada na Capital estava assistindo ao programa.
Evidentemente, a pandemia de coronavírus tem forte impacto nos números atuais. Alice Urbim, gerente de programação e entretenimento da RBS TV durante os anos de 2000 a 2019, aponta que a grade dedicada ao jornalismo, com atualizações sobre o avanço da doença e reprises de novelas, registraram números superiores às médias dos últimos anos.
— A TV aberta, como é de graça, reina numa hora de crise. Ela segue porque é de graça, com áudio e vídeo digitais, com uma qualidade absurda em todo o Brasil. A pandemia proporcionou que o conteúdo dela se tornasse rei — reforça Alice, profissional do ramo desde 1975.
Daqui para a frente, ela acredita que a TV deve ser ainda mais interativa, reduzindo as fronteiras entre o espectador e o apresentador; espiral, com o virtual afunilando as camadas de produção; e interseccional, mostrando que o público precisa de maior identificação com o que é exibido na tela. Alice cita, como exemplo, a audiência acima da média alcançada pela transmissão do filme Pantera Negra na Tela Quente, em 31 de agosto, dias após a morte do protagonista Chadwick Boseman.
— É uma volta ao passado. Lá no começo, tínhamos apresentadores anunciando os filmes e agora no Pantera Negra tivemos o Manoel Soares. As pessoas têm necessidade de enxergarem alguém falando sobre aquilo. A representatividade fala ainda mais alto agora — acredita Alice.
Seguindo esta mesma linha, o diretor de tecnologia de TV e Rádio do Grupo RBS, Carlos Fini, acredita que os próximos anos devem reforçar a importância da TV aberta em um formato de transmissão híbrido, com o sinal transmitido pelo ar complementado pela interatividade proporcionada pela conexão da internet.
Fini usa como exemplo um Gre-Nal, que pode ter 3 milhões de gaúchos assistindo a todos os lances da partida sem limitação de acesso e conexão, simultaneamente.
— As ferramentas vão se complementar. A transmissão de TV é garantida pelo ar e de forma gratuita. O espectador poderá ver informações complementares do jogador via dados da banda larga. Não estamos parados em termos de tecnologia, e a proteção de dados vai trazer equilíbrio para essa disputa. Quem não tem conectividade vai ter acesso a tudo somente pela TV — frisa Fini, que cita a realidade aumentada e a plateia virtual como recursos a serem explorados nos próximos anos.
Apesar da concorrência e de impor desafios, o streaming aumentou as possibilidades da televisão em termos de produção, reforçando a necessidade de programas mais universais. Assim, a TV aberta começa a perder cada vez mais os limites em termos criativos e impera como um meio absoluto de comunicação com todos os públicos, diz Eugênio Bucci:
— A integração é pela imagem e agora é global, não temos nacionalidade. Todas as questões mais graves do mundo são compartilhadas na TV globalmente. A TV aberta no Brasil tem uma centralidade impressionante, que não existe em lugar nenhum, com produções que são feitas daqui e para o povo daqui. Isso ajuda a mantê-la cada vez mais forte e presente.
Gerente executivo de Programação e Projetos da RBS TV, Marco Gomes destaca o alcance de massa, a relevância e a relação muito afetiva do público com a televisão.
— E se engana quem pensa que essa relação vai deixar de existir por conta dos avanços tecnológicos — comenta Gomes. — Pelo contrário, são eles que garantirão que a televisão seguirá sendo o principal meio de informação e entretenimento da nossa gente. A televisão dos próximos anos, com imagem e som ainda mais sofisticados, também oferecerá ferramentas que possibilitarão diferentes experiências de interação, com excelentes novas oportunidades para os telespectadores e anunciantes. A programação, que hoje já pode ser consumida em aparelhos tradicionais ou em dispositivos móveis, também evoluirá neste sentido, acompanhando, com ainda mais competência, a jornada diária do consumidor: não apenas com ele, onde ele estiver, mas com o programa a que ele quiser assistir naquele momento.