Revolta, incredulidade, compaixão. Estes foram alguns dos sentimentos que mexeram com o público nas cenas em que Nicolau (Marcelo Serrado) agrediu a mulher, Afrodite (Carolina Dieckmann), na novela das nove, "O Sétimo Guardião". Corta para a vida real: a trama liga o sinal de alerta para a violência doméstica e o machismo, ainda tão entranhados nos lares. Entenda como o ciclo começa, veja a história de quem já viveu esse drama e saiba como a mulher precisa agir para não fazer parte das tristes estatísticas.
É preciso acordar do pesadelo
Na história escrita por Aguinaldo Silva, Nicolau agrediu a mulher fisicamente e, mesmo levando um gelo de Afrodite, ainda a ofende até hoje. O estopim foi quando Nicolau bateu em Afrodite pelo simples fato de ela utilizar DIU (dispositivo intrauterino) sem o conhecimento dele. Rivalda (Giulia Gayoso), a filha mais velha do casal, contou ao pai que a mãe usava o contraceptivo.
Irado, pois tudo o que o chapista desejava era o quinto filho, ele agrediu a mulher, que, enfim, decidiu sair de casa.
Ao ver a mãe arrumar as malas, Rivalda tripudiou perguntando o que Afrodite fez para apanhar. Assumindo o seu machismo e reproduzindo o comportamento do pai, ainda disse que, se a mãe não tivesse mentido para o marido, nada disso teria acontecido.
De acordo com Denise Regina Quaresma da Silva, psicóloga e professora do programa de pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Feevale, algumas mulheres adotam a postura machista para tentar “sobreviver” em uma sociedade dominada por este padrão. Para irem além em suas vidas profissionais e pessoais, acreditam que precisam se “masculinizar”.
– Denominamos esta prática como “violência intragênero”, pois, para algumas mulheres, existe um limite social imaginário de até onde elas podem ir sendo mulheres – explica a psicóloga.
Para poder viver
Em outra sequência de O Sétimo Guardião, o chapista humilhou a mulher, ao desconfiar de que ela estava tendo um caso extraconjugal. Ao reclamar da forma como era tratada, Afrodite deparou com uma das faces mais cruéis do machismo: o menosprezo pelo fato de ser mulher:
– Você não escuta, Nicolau! Nunca! Acha que mulher é um bicho inferior.
– E não é? – perguntou ele, para desespero dela.
Sócia-fundadora da ONG Themis e professora do mestrado em Direitos Humanos da UniRitter, Carmen Campos pontua que a história da novela mostra como a sociedade brasileira é preconceituosa com o sexo feminino.
– Essa ideia de que há papéis destinados a mulheres e outros a homens revela como a gente precisa avançar nesses temas. As mulheres têm plenas condições de realizar quaisquer atividades de fato – afirma Carmen.
Para a psicóloga Denise, a única forma de dar um basta em um relacionamento abusivo, encerrando o ciclo da violência, é ver com total clareza o quão danoso é o comportamento do agressor:
– Já me perguntaram: “como a gente desama?”. A gente deixa de amar quando percebe que o outro faz mal para a gente. Precisamos “desamar” para sobreviver.
"Ele me fazia tirar a roupa"
O caso de Nicolau e Afrodite não é mera obra de ficção. Muitas mulheres vivem relacionamentos tóxicos, dos quais não conseguem se livrar.Cansada da vida com o companheiro com o qual estava casada há oito anos, viciado em drogas, M., 33 anos, decidiu sair de casa. Há seis meses, foi até o Palácio da Polícia, na Capital, para pedir encaminhamento a um abrigo. Ao conversar com os policiais, foi instruída a denunciá-lo dentro da Lei Maria da Penha, de 2006, pois o que ela estava sofrendo era, sim, violência:
– Para mim, não era. Achava que era só o efeito da droga. Hoje, consigo entender que a maneira como ele agia não era só por causa da droga. Me chamava de imprestável, mas não me deixava trabalhar. Eu tinha de ficar 24 horas por dia com ele.
A decisão de sair de casa veio depois de uma briga presenciada pelo filho de seis anos. M. reuniu força para evitar que o menino fosse exposto aos abusos.
– Ele me fazia tirar a roupa para procurar vestígio de traição. Uma vez, eu estava no banheiro, ele chegou e não me deixou puxar a descarga. Colocou a mão lá dentro (do vaso) para procurar camisinha usada – relata a vítima.
Recomeço
Sem ter para onde ir após a denúncia, já que dependia economicamente do marido, M. encontrou na Ocupação Mulheres Mirabal seu novo lar. No movimento que ampara vítimas de qualquer tipo de violência, obteve ajuda psicológica para entender o que vinha acontecendo.
– Ele sempre dizia que iria mudar, usava palavras carinhosas para me convencer a não ir embora. Como tenho um filho e estava desempregada, não sabia o que fazer. Tinha de viver aquilo para não passar necessidade – conta ela.
Segundo a psicóloga Denise, isso é recorrente:
– A grande maioria não reconhece os abusos como sendo violência psicológica. A primeira é a psicológica, que evolui no ciclo (leia abaixo), culminando na agressão.
Hoje, o ex-marido está preso por outro delito. Por conta da denúncia, a Polícia Civil chegou até ele. M. se diz melhor na casa Mirabal, mesmo sem emprego:
– Só tenho medo (de vingança) pela denúncia.
Acolhimento e união
A Ocupação Mulheres Mirabal, coordenada pelo Movimento de Mulheres Olga Benário, é uma ação social que ampara vítimas de violência doméstica. Funciona como centro de referência há dois anos. Neste período, mais de 200 já passaram por atendimento. Antes centralizados na Rua Duque de Caxias, no Centro Histórico, hoje, os acolhimentos são realizados na Escola Benjamin Constant, na zona norte da Capital, fechada pelo governo Sartori no início de 2018.
Voluntária da ação, a estudante de Direito Andréia Aguiar de Lima, 36 anos, de Porto Alegre, conta que as mulheres, quando não sofrem violência física, não têm noção do mal que suportam com o abuso psicológico. Às vezes, só percebem após receberem apoio especializado:
– Quando consegue fugir do ciclo de violência, vê que aquilo não é normal e que não tem culpa. Ela começa a ver o quanto o discurso da sociedade é machista e vai se libertando. Muitas abrigadas viram militantes feministas.
Precariedade
Reconhecida por órgãos públicos, como a Polícia Civil e o Ministério Público, a Ocupação Mulheres Mirabal tem voluntários nas áreas de Psicologia, assistência social, Direito e saúde.
A principal justificativa para o seu surgimento é a falta de serviços públicos direcionados a mulheres em situação de vulnerabilidade.
– É uma demanda que existe (a da falta de estrutura), que dificulta o nosso trabalho, mas é importante que se diga que isso não pode nos paralisar. Embora tenhamos de qualificar essa rede (delegacias e centrais telefônicas), não podemos falar que elas vão ter de sofrer caladas – observa a delegada Tatiana Bastos, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) de Porto Alegre.
A estrutura da casa
/// O acolhimento na Mirabal tem um prazo de dois meses, que é negociável para mais, conforme a necessidade da mulher. Para ingressar na casa, é necessário preencher um cadastro. O endereço é Rua Souza Reis, 132, bairro São João, na Capital.
/// Hoje, há oito vagas disponíveis na Mirabal, que abriga cinco mulheres e seis crianças. Conta com assistentes sociais, profissionais de saúde, psicólogas, voluntárias na área jurídica e professoras como rede de apoio, todas agindo de forma voluntária. O movimento se mantém por meio de doações. Toda contribuição é bem-vinda.
/// Mulheres podem levar consigo seus pertences, filhos menores e mães dependentes delas. Este é um fato que chama atenção, justamente porque estas referências emocionais podem fazer toda a diferença para quem está tentando se reconstruir emocionalmente. Em instituições formais, nada disso é permitido normalmente.
Veja como fala
Expressões que ainda fazem parte do dia a dia da maioria das mulheres são indicações do machismo e da tentativa de inferiorizar o sexo feminino. Mas é preciso desconstruir esse discurso também nas mulheres!
Ruim com ele, pior sem ele.
Lugar de mulher é em casa.
A culpa é dela porque não dá valor ao marido que tem.
Mulheres estão fazendo muito mimimi!
Ela mereceu... por causa da roupa que estava usando.
Fontes: Denise Quaresma, professora do programa de pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Feevale, e Fabiane Lara dos Santos, promotora legal popular do Conselho Municipal do Direito das Mulheres de Canoas (Condim).
Tentativas de feminicídio disparam em 2019
Histórias como a de M. representam a realidade cruel vivida por muitas gaúchas. A frieza dos números não traduz o desespero das vítimas, mas a Secretaria de Segurança Pública (SSP), por meio de dados divulgados em 13 de fevereiro, traz um breve alento: os feminicídios (mortes de mulheres por condição de gênero) tiveram queda de 71% em janeiro deste ano, no Rio Grande do Sul.
Duas mulheres foram mortas por questões de gênero no Estado, no primeiro mês deste ano. No mesmo período, em 2018, foram sete vítimas. Porém, houve aumento de 40% nas tentativas de feminicídios (35 para 49).
Segundo a delegada Tatiana Bastos, os números alcançaram este patamar em razão da qualificação dos dados:
– Agora, ao verificar as ocorrências, passamos um pente-fino e classificamos tudo o que possa atentar contra a vida da mulher, como tentativa de feminicídio, não mais como agressão ou lesão corporal. Um estrangulamento não pode ser lesão corporal, mas tentativa de feminicídio. Daí, o aumento deste crime.
Outros três indicadores mostraram redução. A mais significativa foi registrada nos estupros: -32%. Também caíram os crimes de lesão corporal (-6%) e ameaça (-3%).
Peça ajuda
/// Denuncie pelo 180. Criado em 2014, o número é válido em todo o Brasil. Funciona todos os dias, 24 horas por dia, até em feriados. As denúncias recebidas via telefone são encaminhadas aos sistemas de Segurança Pública e do Ministério Público do local correspondente. Qualquer um pode denunciar.
/// Para emergências: ligue 197 (disque-denúncia da Polícia Civil do RS) ou 190 (Brigada Militar)
/// Pelo WhatsApp, o contato da Polícia Civil é pelo (51) 98418-7814. Serve para todo o tipo de denúncia.
/// Precisa de um encaminhamento? Ligue para 0800 – 541 – 0803. O atendimento ocorre de segunda a sexta-feira, das 8h30min às 18h.
/// Para registrar ocorrência, procure a delegacia mais próxima (todas podem registrar um boletim por violência doméstica, crime amparado pela Lei Maria da Penha) ou uma unidade da Delegacia da Mulher. Na Capital, ela fica localizada no Palácio da Polícia (Avenida João Pessoa, 2.050)
Fonte: site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) de Porto Alegre.
Entenda a diferença
Para ter acesso aos serviços, a vítima de violência doméstica é encaminhada via delegacias, conselhos tutelares, unidades de saúde, emergências hospitalares e por outros serviços que realizam atendimento às mulheres.
Casa-abrigo
/// O que é: serviço de graça e de longa duração (de 90 a 180 dias), Em geral, sigiloso, com endereço preservado. No RS, são 14.
/// Público-alvo: mulheres em situação de violência doméstica e familiar, com risco de morte (acompanhadas ou não de seus filhos).
/// Objetivo: auxiliar no processo de reorganização da vida das mulheres e no resgate de sua autoestima.
Casa de referência
/// O que é: serviço público de curta duração (até 15 dias), e o endereço não é sigiloso*. No RS, são 21 centros oficiais.
/// Público-alvo: mulheres em situação de violência de gênero (em especial da violência doméstica e vítimas do tráfico de pessoas), que não estejam com risco de morte (acompanhadas ou não de seus filhos).
/// Objetivo: realizar diagnóstico da situação para encaminhamentos que forem necessários.
/// Veja os endereços das casas de referência do Estado em bit.ly/casasdereferencia.
Fonte: Secretaria de Políticas para as Mulheres do Estado do Paraná (SPM-PR) e site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ-RS).
O ciclo do abuso
A violência doméstica funciona como um sistema circular que apresenta três fases.
1) Aumento de tensão: as tensões acumuladas no cotidiano, as injúrias e as ameaças feitas pelo agressor geram, na vítima, uma sensação de perigo. É quando o par cria atrito e passa a se comportar de maneira mais ameaçadora.
2) Ataque violento: o agressor maltrata, física e psicologicamente, a vítima.
3) Lua de mel: o agressor envolve a vítima em carinho e atenção. Ele se desculpa pela violência e promete mudar.
/// A teoria do ciclo, criada em 1970, é utilizada, até hoje, por psicólogos, defensores públicos e promotores de Justiça especializados na defesa da mulher. Segundo a norte-americana Lenore Walker, psicóloga e criadora da teoria, não há um intervalo definido entre cada ciclo. "Cada fase pode demorar de um a seis meses – e (pode) se repetir até mesmo por anos", escreveu a especialista em sua teoria.
Fonte: The Battered Woman, livro de Lenore Walker
*Produção: Rossana Ruschel