*Ana Bandeira, mestre em Comunicação e colunista do site Ligado em Série
Parece que foi em outra era, mas houve um tempo em que não estávamos imersos na cultura digital e nossas formas de interação ocorriam de outra forma. As conversas sobre os assuntos do momento não aconteciam nas redes sociais, mas predominantemente na vizinhança, pelo telefone, nos bebedouros das empresas e nos salões de beleza. Um dos assuntos mais discutidos nos anos 80 foi uma novela que rompeu padrões na televisão brasileira: Vale Tudo, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères e exibida na rede Globo entre maio de 1988 e janeiro de 1989 (e atualmente em reprise no canal Viva).
Um espelho do Brasil na época, mas ainda muito atual, a obra vive até hoje em nosso imaginário por abordar de forma crua valores como a honestidade, uma prova de que a necessidade de falar sobre a corrupção arraigada na cultura brasileira não é de hoje. Isso ficou muito evidente desde a abertura, que tinha como trilha Brasil, composição de Cazuza em uma versão de Gal Costa, até a icônica cena final, com Marco Aurélio, personagem interpretado por Reginaldo Faria, demonstrando seu desdém pelo país enquanto fugia em seu jatinho. Muitos personagens e situações se destacaram na trama, como a vilã Maria de Fátima (Glória Pires) e a alcoólatra Heleninha Roitman (Renata Sorrah), mas ninguém teve mais popularidade na novela do que sua mãe, Odete Roitman, interpretada de forma inesquecível por Beatriz Segall, que faleceu hoje.
Notória pelos ataques verbais e pelo desprezo pelas pessoas, mas sempre mantendo um alto grau de elegância, a personagem despertou uma relação de amor e ódio no público, um resultado que só foi atingido graças à qualidade da atuação da atriz. Sua morte foi um dos eventos televisivos mais comentados até hoje, gerando a famosa pergunta: Quem matou Odete Roitman? Considerando todo o burburinho gerado pela cena em que a vilã é assassinada com três tiros, é curioso recordar hoje que o mistério durou apenas poucos capítulos. Uma grande marca até mesmo lançou uma promoção para premiar quem descobrisse a identidade do assassino, aproveitando a conversa que dominava o país inteiro. Poucas vezes um produto cultural mobilizou tanto as pessoas, e podemos imaginar o universo de teorias, memes e spoilers que existiria se a novela foi lançada atualmente. Falando em spoiler: mesmo quando o termo não era corriqueiro como nos dias de hoje e não fosse tão fácil ter acesso e compartilhar roteiros e imagens vazadas, houve toda uma preocupação por parte da produção em não deixar que a surpresa sobre a revelação do assassino fosse estragada. A aguardada cena foi gravada no próprio dia em que o capítulo foi ao ar, e com várias opções de desfecho para que nem os atores soubessem o verdadeiro final.
Foi sem dúvida um grande feito para a teledramaturgia brasileira, relembrado até hoje, e que jamais teria sido alcançado sem o talento de Beatriz Segall.