Por se tratar da volta do cineasta David Lynch ao seu inimitável universo fantástico e delirante, impressões sobre a terceira temporada de Twin Peaks, vistos apenas os dois episódios já disponibilizados pela Netflix, do total de 18 capítulos, são exatamente isto: impressões rarefeitas que podem se concretizar ou virar fumaça no decorrer da série.
Alguns pontos que chamaram a atenção:
Sem "quem matou?"
De pronto, Lynch e Mark Frost, seu parceiro na criação de Twin Peaks, evitaram começar a nova temporada repetindo o "quem matou?" – recurso narrativo que fisgou o público em 1990, no começo da primeira temporada. Descobrir o assassino da jovem Laura Palmer foi a ponto de partida para desenrolar e emaranhar o fio da investigação do agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan). Misturando suspense, horror, comédia, ficção científica e melodrama romântico, a trama destacava que nada nem ninguém na cidadezinha de Twin Peaks era o que parecia ser.
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Mais sombria
A nova Twin Peaks tem, até aqui, raríssimas cenas de humor. É densa e violenta. Começa abrindo portas em dimensões distintas e apresentado diferentes cenários. Entre os velhos personagens, destacam-se o policial Hawk e a Senhora do Tronco. São eles que dão a partida para descobrir o que aconteceu com Cooper, aprisionado no limbo sobrenatural conhecido como Black Lodge enquanto seu doppelgänger, a réplica do mal, toca o terror liderando uma gangue com gente muito esquisita. Outros personagens antigos, como a sonsa secretária da delegacia, Lucy, e seu apatetado marido, o policial Andy, não parecem ter muito a contribuir com seu registro cômico no clima sombrio que a nova série desenha.
Espraiada
Por enquanto, temos ação e novos personagens em três outras cidades além de Twin Peaks. Em Nova York, um rapaz é contratado por bilionário misterioso para observar horas a fio algo acontecer dentro de uma caixa de vidro cercada por câmeras. Uma garota nele interessada aproveita um descuido (será?) da segurança e entra na sala. E algo acontece. Enquanto isso, a polícia de uma cidadezinha de Dakota do Sul investiga um brutal assassinato: a cabeça de uma mulher foi colocada junto ao corpo de um homem. O suspeito do crime é o diretor da escola local, mas o sujeito garante que nunca esteve no apartamento da vítima, apenas sonhou estar lá. Já em Las Vegas, pistas mínimas: o diálogo entre dois homens indica a presença de um tipo nefasto dando as cartas por ali.
Black Lodge
No quarto vermelho do Black Lodge, o agente Cooper do bem segue interagindo, digamos assim, com velhos conhecidos, todos falando naquele pastoso e assustador modo reverso: o gigante, o homem sem braço, Laura Palmer, Leland Palmer e uma árvore seca que abriga "o braço", entidade que faz às vezes nessa temporada do anão dançante (cujo intérprete ficou de fora do elenco por discordâncias financeiras).
Unidade conceitual garantida
O fato de Lynch e Frost serem os roteiristas de todos os episódios, e Lynch o único diretor no set, assim como Duwayne Dunham assinando a montagem, deve garantir a unidade conceitual da série. Um dos problemas nas temporadas anteriores, na segunda especificamente, foi a ciranda de roteiristas e diretores que fez a série, a certo ponto, sair dos trilhos. Tanto que a audiência despencou, e Twin Peaks chegou a ser cancelada pelo canal ABC, voltando ao ar apenas após intensa mobilização dos fãs.
Tosquice proposital?
Tem gente discutindo a tosquice de alguns efeitos especiais. Fãs de Lynch garantem que é proposital, dado que diretor é admirador dos filmes B de terror e ficção científica. Algumas das "aparições" vistas nos dois primeiros episódios dialogam com as criações do diretor na seu trabalho como artista visual.
Pouco Badalamenti
A icônica trilha sonora de Angelo Badalamenti, onipresente nas temporadas anteriores, está, até agora, restrita ao tema de abertura. É mais um interessante recurso dos criadores para descolar a nova produção das inevitáveis comparações com a série dos anos 1990. A nova trilha, novamente com a assinatura de Badalamenti, é bastante boa. No encerramento do segundo episódio, vocalista da banda Chromatics emula a voz de Julee Cruise, a cantora-fetiche de Lynch. A trilha na nova temporada será lançada em setembro.
Autorreferencial
O novo Twin Peaks traz muitas referências a filmes que Lynch fez após a série revolucionar a TV no começo dos anos 1990: Estrada Perdida (1997), Cidade dos Sonhos (2001) e Império dos Sonhos (2006), nos quais radicalizou sua experimentação narrativa e visual. Percebe-se ainda ecos de seu primeiro longa, Eraserhead (1977).
Versatilidade
Kyle MacLachlan é uma surpresa muito positiva encarnando a versão maligna do agente Cooper, com cabelos compridos, pele bronzeada, jaqueta de couro e muita maldade no coração (se tiver um). O ator tem chance de consagrar como um tipo antológico. Presentaço que lhe deu o amigo David Lynch.
Mistérios
Algumas intrigas que já quebram a cabeça dos fãs: o que significam os citados números 430 e 253?. Quem são Richard e Linda, os dois coelhos a serem abatidos com uma só pedra? O agente do FBI Phillip Jeffries, que o cantor David Bowie viveu no filme Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992), com eventos anteriores aos vistos na série, é mencionado como uma figura importante nesse começo da trama. Teria Bowie registrado na surdina sua participação antes de morrer, em 2016? A produção foi cercada de segredos, com atores recebendo apenas suas falas no roteiro e no dia das filmagens, sem ter noção do conjunto da obra em andamento. Dois nomes importantes do elenco da nova temporada morreram em meio ou logo após as filmagens: Miguel Ferrer (o perito do FBI Abert Rosenfeld) e Catherine E. Coulson (a Senhora do Tronco).
Pegadinha do Lynch
Curiosamente, entre vivos e mortos que devem dar caras na série, no segundo episódio chamou a atenção a presença do ator Walter Olkewicz, que fez o atendente de bar já falecido Jacques Renault. É uma pegadinha de Lynch. Ele está creditado como Jean-Michel Renault, um dos irmãos da gangue de traficantes.
Café, tortas e rosquinhas
Onipresente nas temporadas anteriores, a nova ainda não mostrou o banquete de tortas de cereja e donuts regado a litros de café. Mas são feitas citações a estes combustíveis que seduziram Cooper: em uma cena com os policiais na sala de reuniões da delegacia, que costumava aparecer forrada com as delícias típicas da cidade, e na conversa por telefone entre Hawk e a Senhora do Tronco.