No quarto vermelho, o encontro para o futuro foi marcado: "Verei você em 25 anos", sussurrou a falecida Laura Palmer ao ouvido do agente do FBI Dale Cooper, enquanto o anão de fala esquisita dançava profetizando ao investigador: "Seu chiclete favorito voltará à moda em grande estilo".
O clima de suspense, sonho, pesadelo e humor nonsense que marcou sequências antológicas como essa de Twin Peaks ainda está muito vivo na memória dos fãs do seriado que, desde sua exibição nos EUA (entre abril de 1990 e junho de 1991), tornou-se um marco da cultura pop e embrião da fase de ouro que a dramaturgia televisiva viveria nas décadas seguintes.
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No últimos meses, Twin Peaks volta a ser reverenciada em razão de sua terceira temporada, retomando a série 25 anos após seu último episódio ir ao ar em 10 de junho de 1991. O retorno está programado para o próximo domingo, no canal americano Showtime – a atração ainda não tem previsão de estreia no Brasil.
Exemplo de ousadia narrativa e formal,Twin Peaks esgarçou limites criativos a níveis até então raramente vistos na TV americana. Lynch já era um cineasta consagrado por filmes "esquisitos" como O Homem Elefante e Veludo Azul quando aceitou o convite de seu amigo Frost para criarem um projeto para a ABC, que amargava a os piores índices de audiência entre as três grandes redes de TV dos EUA. Os executivos da emissora avaliaram que não tinham nada a perder com o risco. E acertaram o alvo.
A sinopse: em cidadezinha do noroeste americano parada no tempo, próxima da fronteira com o Canadá, a jovem Laura Palmer (Sheryl Lee) aparece morta à beira de um lago, enrolada em um saco plástico, brutalmente espancada e violentada. Chega ao lugarejo o agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan), que segue os passos de um serial killer. Cooper é orientado por uma lógica absurda: segue tanto a intuição quanto dicas que lhe chegam como charadas em seus sonhos. A espetacular trilha sonora original composta por Angelo Badalamenti sublinhava o cenário ora onírico, ora fantasmagórico.
Com liberdade além do convencional, Lynch e Frost mostraram que a trama policial calcada na velha premissa do "quem matou?" era apenas a ponta do iceberg. Já no episódio piloto, Twin Peaks mergulhava em um enredo intrincado misturando suspense, melodrama, humor negro e terror sobrenatural. Ninguém ali era quem parecia ser. Cidadãos insuspeitos moviam-se por entre perversões sexuais, relações incestuosas, adultérios, prostituição, tráfico de drogas e falcatruas financeiras. Sobre isso tudo foram lançados ainda elementos fantásticos: possessão demoníaca e personagens bizarros transitando entre universos paralelos.
O impacto da série foi tremendo. A audiência da ABC chegou a 28 pontos, índice altíssimo para os padrões americanos. A série se tornou assunto onipresente na imprensa, em programas de TV, nas mesas de bar. Espertamente, Lynch e Frost criaram personagens e situações tão complexas e fascinantes que exigiria tempo para desenrolar o fio da meada até a solução do mistério. A primeira temporada teve, além do piloto, mais sete episódios. Foi garantida uma segunda leva, com outros 22 capítulos.
A passagem de Twin Peaks pelo Brasil foi curiosa. Estreou na Globo em abril de 1991, após o Fantástico. A emissora, no entanto, mutilou o seriado com vários cortes e criou seu próprio final, o que descaracterizou totalmente a obra. O que já era confuso ficou ainda mais sem pé nem cabeça.
Anos depois, a série pôde ser conferida na íntegra em emissoras como a TV Guaíba (no Rio Grande do Sul) e nos canais pagos. Twin Peaks também foi responsável pelo maior spoiler da história da TV brasileira, quando uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo, em razão do final da atração nos EUA, revelou o assassino sem avisar seus leitores, que ainda especulavam por aqui quem tinha matado Laura Palmer. Imagina-se o estrago que esse anticlímax provocaria hoje em dia.
Curiosidades
– Por obrigação contratual, David Lynch e Mark Frost tiveram de dar um desfecho ao mistério "Quem matou Laura Palmer?" no episódio piloto destinado ao mercado europeu. Seria a solução para exibir a produção de forma independente caso a série não emplacasse. Essa versão foi lançada em VHS no Brasil e está entre os extras da caixa de.
– Lynch delegou a um time de diretores e roteiristas o desenrolar da série. Um programa de computador com as diretrizes básicas do enredo e das características dos personagens servia de guia para preservar a unidade da trama.
– Lynch não queria solucionar o assassinato de Laura Palmer. Mas a pressão dos executivos da ABC foi de tal ordem que o assassino foi revelado na metade dos 30 episódios.
– Com a revelação, a série perdeu o rumo e abriu-se a experimentações e a novos arcos dramáticos, que deixaram o elenco insatisfeito e sem rumo. A audiência despencou. Lynch afastou-se da produção para tocar seu longa Coração Selvagem (1990), Palma de Ouro em Cannes, mas voltou em tempo de recolocar Twin Peaks nos trilhos e apresentar um desfecho digno e impactante.
– Com a baixa audiência, a ABC passou a mudar os dias de exibição semanal da série, de quinta foi para o sábado e, depois, para segunda-feira.
– O ator Kyle MacLachlan não queria participar do filme Os Últimos Dias de Laura Palmer. Mudou de ideia em meio à produção, e o agente Cooper acabou incorporado à trama.
– Lara Flynn Boyle não aceitou a convite para viver novamente a personagem Donna, no filme interpretada por Moira Kelly.
– Desde 1993, é realizado no Estado de Washington, na região que serviu de locação para a série, o Twin Peaks Festival, evento que conta com visita guiada aos cenários principais e que tem como ponto alto o encontro entre fãs e atores. Em 2014, por exemplo, marcaram presença Sherilyn Fenn (Audrey Horne) e James Marshall (James Hurley).
– Em uma versão japonesa do passeio, pode-se tirar fotos embrulhado em um saco plástico na margem do mesmo lago em que foi descoberto do corpo de Laura Palmer.