Para registrar o momento trágico pelo qual o Rio Grande do Sul está passando, são necessários textos, fotos, vídeos, vozes e desenhos. Sim, desenhos. Afinal, com eles é possível expressar o que outras mídias às vezes não conseguem. Esta variedade de linguagens que se complementam está deixando eternizado este doloroso capítulo da saga gaúcha — para que talvez no futuro os mesmos erros não sejam repetidos.
Um dos artistas que estão trabalhando nesse registro, descrevendo com traços a situação dos gaúchos, é o alvoradense Pablito Aguiar (no Instagram: @pablito_aguiar), 36 anos, que está produzindo uma série de quadrinhos para o Sumaúma, projeto focado em notícias da Amazônia que tem entre os fundadores a jornalista gaúcha Eliane Brum. O trabalho do artista é retratar o cotidiano daqueles que tiverem as suas vidas afetadas pela enchente, dando espaço para pessoas comuns contarem as suas histórias.
Neste cenário, o quadrinista — que viu a água chegar a uma quadra de sua casa, no bairro Sumaré — entende que é preciso fazer um trabalho cuidadoso, uma vez que o desenho ainda é visto por muitas pessoas como algo relacionado ao humor. Para Aguiar, a definição é outra. O que ele faz é jornalismo, transformando entrevistas em ilustrações, conseguindo casar a imagem com o texto de uma forma única, sensível.
— Está sendo muito delicado conversar com essas pessoas que foram afetadas diretamente pela enchente. Porque tocar neste assunto é difícil. Em praticamente todas as entrevistas que eu fiz, a pessoa se emocionou, chorou. É ainda difícil processar tudo, mas sei que é importante registrar de alguma forma o que está acontecendo. Quando vou desenhar, procuro colocar exatamente aquilo que a pessoa me disse, sendo fiel às palavras dela — salienta Aguiar.
O jornalista e desenhista explica que, além de retratar estas histórias, ainda se sente grato por enxergar o seu trabalho, por vezes, como agente transformador, quando consegue, através de sua arte, ajudar quem está precisando. Na primeira história da enchente publicada por ele, a comunidade que o segue se uniu e foi possível arrecadar dinheiro para os atingidos tentarem, na medida do possível, resgatar as suas vidas de antes.
Objetivo da charge é fazer o leitor pensar
No começo de maio, Jean Galvão, cartunista da Folha de S.Paulo, se viu no centro de uma polêmica: uma ilustração feita por ele sobre a enchente no Rio Grande do Sul não foi bem aceita pelos leitores do jornal. A charge mostrava uma família se refugiando da inundação no telhado da casa, e uma das crianças falando para a outra: "Não chora, vai alagar ainda mais...". Muitos entenderam a obra como uma forma de humor, mas não era o caso, segundo o cartunista Pedro Leite (no Instagram: @pedroleiteok), 41 anos:
— Não se pode brincar com morte, mas em nenhum momento a charge do Jean era uma brincadeira. Não era uma piada. Nem toda charge precisa ser piada, fazer a pessoa rir. O objetivo da charge, do quadrinho, do cartum, é fazer a pessoa pensar. Muitas vezes, é com a piada, mas outras vezes é com uma crítica. Então, tornou-se um assunto perigoso, porque as pessoas ainda pensam que charge e quadrinho têm uma essência de humor. E nem sempre é assim.
Leite fez um quadrinho recentemente com o tema da enchente, colocando um gaúcho vendo dois gráficos com uma distância temporal. No primeiro quadro, de 2021, o personagem observa a evolução de casos de covid-19 no Brasil; no segundo, de 2024, se assusta com o aumento do nível do Guaíba.
— O quadrinho que eu criei não é para rir. É para gente achar triste, porque ele compara o estresse que a gente está tendo agora com o estresse que a gente teve na pandemia — salienta Leite, que mora a quatro quadras do Mercado Público e viu boa parte do seu bairro debaixo d'água.
Pablito Aguiar complementa:
— Assim como a escrita, como o audiovisual, se a pessoa acha que desenho significa apenas algo de humor, falta uma educação de leitura, mesmo. Falta entender como ler os desenhos. Com eles, é possível expressar infinitas coisas, sejam tristes ou alegres.
Família de artista gráfica perdeu tudo
Se alguns artistas conseguem seguir produzindo conteúdo neste contexto dramático, outros foram diretamente afetados pela enchente. É o caso de Júlia Albertin (no Instagram: @juliaalbertin), 26 anos, moradora do Centro Histórico. Ela viu 30 membros sua família, moradores de Canoas e do bairro Humaitá, em Porto Alegre, perderem todos os bens que tinham — e isso a desestabilizou para seguir tocando o seu trabalho.
Com o apoio de outros desenhistas, então, uma campanha virtual surgiu para ajudar Júlia e seus familiares — incluindo pai, mãe, avó, tios e irmão — a reerguer pelo menos um pouco do que foi perdido pela enchente. Quem apoiar via Pix (e-mail: albertinjulia@gmail.com) recebe obras digitais de artistas parceiros como recompensa.
— De início, eu não conseguia criar estratégias para ajudar minha família porque, no meio do furacão, era muita coisa para resolver. Aí, tive que fazer o que a gente fica com mais vergonha, que é pedir ajuda. Fui abertamente nas redes sociais procurar quem tivesse disponibilidade e condição de criar uma estratégia de arrecadação para mim, com algum método online. Tive ajuda da Lila Cruz, quadrinista que veio de coração aberto e fez toda a organização de artistas disponíveis para mandar suas artes como recompensa. Então, o que tem sido muito legal é essa rede de solidariedade dos artistas — observa Júlia.
Devido às circunstâncias, a artista está impossibilitada emocionalmente de criar arte, que ela considera a sua forma de se expressar para o mundo. Este cenário a abala ainda mais.
— Esse dias, consegui tirar um momento para desenhar, e a única coisa que consegui desenhar foi eu encolhida, chorando em um vazio. E é o que a gente tem sentido neste momento: uma falta de certeza das coisas, um vazio muito grande — descreve ela.
A situação de Júlia não é a única. Rafael Fritzen, criador da página Ângulo de Vista, também teve a sua casa alagada até o teto. Ele pede ajuda via Pix (e-mail: contato.fritz@outlook.com). O ilustrador Daniel HDR teve o seu estúdio, o Dínamo, afetado, com grandes perdas materiais. Ele também pede contribuições pelo Pix (e-mail: contato@dinamoestudio.com.br).