Por Arthur de Faria
Músico e escritor, autor, entre outros livros, de “Porto Alegre: Uma Biografia Musical” (2022)
Todos que o conheceram são unânimes em uma palavra: doçura. Carlinhos era um cara doce.
Carlos Alberto Weyrauch Hartlieb nasceu no dia 28 de março de 1947, em Porto Alegre. Adolesceu na Rua André da Rocha tocando baixo acústico num trio de bossa nova, mas aí o baterista do grupo, Hermes Aquino, apareceu com uns discos dos Beatles, e a gente já pode pular pra 1968. Foi aí que, aos 21 anos, Carlinhos abandonou a faculdade de História Natural na UFRGS e foi morar em São Paulo, fazer Comunicações Culturais na USP. Pagava suas contas trabalhando no Instituto Butantã, onde fora parar graças a seus profundos conhecimentos sobre aracnídeos.
Na cidade onde efervescia a Tropicália, ele se enturma com o pessoal do Tuca, o Teatro Universitário Católico. Assume a direção musical do grupo e, com ele, viaja pela América Latina. Volta a Porto Alegre só um ano depois, para vencer o II Festival Universitário, com sua canção Por Favor Sucesso, apresentada junto à espetacular banda Liverpool. Vão parar no Festival Internacional da Canção do Rio, o FIC – e, em função disso, o Liverpool é contratado pra gravar seu único LP, relançado mundo afora desde então. Por Favor Sucesso é sua canção-título.
De volta a São Paulo em 1970, Carlinhos assume a direção musical do Oficina, grupo de Zé Celso Martinez Corrêa que estava na vanguarda do teatro brasileiro. Ele e seu velho amigo Hermes Aquino, também vivendo lá, passam a ser figurinhas carimbadas do programa Feira Permanente de Música Popular, da TV Tupi, dirigido por Fernando Faro. Ao final de três feéricos anos, se manda da maior cidade do Brasil para um autoexílio num sítio em Viamão. Sentia que precisava processar as informações acumuladas. O resultado é seu primeiro show: Sempre é Assim, de 1972. Zé Celso ainda o busca para mais um trabalho, mas em 1973 está definitivamente em Porto Alegre, para nunca mais sair.
Começa fazendo o que melhor sabia: música para teatro – agora no Grupo Província, de Luiz Arthur Nunes. Em 1974, o segundo show: Toque. E aí aceita um desafio da equipe do Teatro de Arena: montar e coordenar um projeto de música na pequena sala que era símbolo da resistência à ditadura na cidade. Assim surgem as míticas Rodas de Som do Arena, coordenadas por ele (hoje se diria “com curadoria de”). Ali, dezenas de novos artistas, como Nelson Coelho de Castro, Os Tapes, Mutuca, Utopia e Jimi Joe, se apresentam (muitos estreiam ali). A abertura é do Bixo da Seda, nova encarnação do Liverpool, que bota 240 pessoas numa lotação de 120, mais mil nas escadarias do Viaduto da Borges, na vã esperança de entrar.
Começava um novo capítulo na música de Porto Alegre.
A partir daí, Carlinhos monta uma trilogia de espetáculos que misturavam teatro, dança e artes plásticas, amalgamando pop, folk rock, lisergia e o folclore gaúcho: M’Boitatá – A Serpente de Luz, Salamanca do Jarau (ambos em 1975) e Sonho Campeiro (1976). A trilogia guasco-psicodélica teve até excursão pelo Interior. Em 1977, com Bebeto Alves e Cao Trein, um novo espetáculo: Voltas. E aí, em 1978, duas das mais ousadas, comentadas e inclassificáveis canções do fundamental LP Paralelo 30 são dele: Admirado por Todos e Maria da Paz – a única do disco que tocou bastante no rádio e ganhou até clipe no Fantástico. Em ambas, melodias quebradas, ritmos insuspeitos, ecos roqueiros e andinos, tudo junto. O discaço da gravadora local Isaec, produzido por Juarez Fonseca, é o marco zero da nova música urbana da cidade.
Entre 1979 e 1983, faz mais três shows – um deles, Encontro das Águas, em parceria com o ex-Almôndegas Pery Souza. Produz outros tantos (como as caravanas gaúchas para São Paulo, em 1980, e Rio, em 1982) e assume o cargo de diretor da Discoteca Pública Natho Henn – que nunca foi tão badalada. Sai de lá em 1983 para se dedicar ao primeiro disco solo, Um Risco no Céu. Com a fita pronta, viaja para vendê-lo a alguma gravadora do centro do país. Volta sem conseguir nada, frustradíssimo, e vai desopilar na modestíssima casinha que construíra na Praia do Rosa (SC).
Em 3 de fevereiro de 1984, é ali que seu corpo é encontrado. Pendurado por uma corda, com os pés no chão, sem 11 dentes, morto há dias e em avançado estado de putrefação. As circunstâncias de sua morte, surreal para um sujeito doce como ele, nunca foram esclarecidas. Tinha 37 anos.
Seu disco foi lançado de forma independente, em LP, só quatro anos depois – e relançado em CD pelo selo Barulhinho em 2004. Logo após sua morte, a família recebeu uma carta da universidade americana de Harvard. Em 1963 – quando tinha 16 anos e uma caranguejeira de estimação – Carlinhos havia enviado a eles uma aranha esquisita que coletara no Morro Santa Teresa, na Capital. Quase 20 anos depois, concluíram que era, efetivamente, uma espécie não conhecida. Que batizaram Alpaida hartliebi.