Breno Serafini (*)
"O humorista nunca atira para matar." Millôr Fernandes (1923-2012)
Uma das teorias do riso refere-se a um guerreiro atingido por uma lança no diafragma, que riu por três dias antes de morrer. Outras reportam a uma certa erva da Sardenha, que faz as pessoas rirem sem parar, até a morte, daí advindo o termo sardônico, para expressar um tipo de humor muito particular. Além disso, como bem Umberto Eco formulou em O Nome da Rosa, a partir da hipotética perda do segundo livro de Aristóteles – referente à comédia –, esta, de uma forma ou outra, sempre serviu para questionar os micro e macropoderosos de plantão, e, talvez por isso mesmo, sempre trouxe embutida em si algum risco, quando não risco de vida. E nada menos do que a obra (e vida) de Milton Viola Fernandes, vulgo Millôr, para exemplificar isso.
Dentre tantas peripécias, ele foi um ativo colaborador d'O Pasquim, que teve uma vida longa (e tumultuada) no seu papel preponderante de resistência à ditadura, em nome da liberdade de expressão. Tudo sempre pela via da inteligência, do humor e do sarcasmo, num carioquês de vários sotaques que repercutia por todo o Brasil naqueles tempos sombrios. Em 1970, quando vários dos integrantes da redação do semanário estavam presos, comprovando o já expresso em seu primeiro artigo na publicação: "Nós, os humoristas temos bastante importância pra ser presos e nenhuma pra ser soltos". Millôr e Henfil fizeram o possível e o impossível para que não deixasse de circular. Millôr inclusive chegou a escrever a coluna de alguns colegas, preservando o estilo de cada um – inaugurava ele aí, talvez, a função de ghost writer na literatura brasileira.
E em 1975, o momento em que foi anunciada a dispensa da exigência de passagem do material pelo crivo da censura foi o que antecedeu exatamente a edição de número 300 do semanário, que, mesmo assim, acabou sendo apreendida. Millôr defendeu, então, que a resposta à arbitrariedade fosse a edição seguinte inteiramente dedicada a satirizar o Ministro da Justiça à época. Sem conseguir convencer a equipe, resolveu deixar o jornal.
Por atitudes como essa, num momento de rara maledicência, seu colega d'O Pasquim, Cláudio Melo e Souza, saiu-se com essa: "O Millôr acha que ele é o inventor da liberdade de imprensa". Inventor ou não, essa foi uma das suas obsessões, tendo inclusive escrito a orelha de uma edição brasileira do livro Areopagítica, de John Milton, verdadeiro libelo pela liberdade de imprensa, apresentado ao Parlamento inglês, em 1644. Nesta, expõe o necessário Decálogo Milloriano.
Já que o verdadeiro guerreiro se conhece é na hora da batalha, sabia Millôr que, com ditadura ou não, era necessário estar sempre alerta. Assim, não se furtou de comprar brigas, preservando seu espaço criativo. Em 1982, por exemplo, saiu da revista Veja, depois de uma longa colaboração, por ter sido admoestado a não fazer campanha para Brizola, na primeira eleição pós-ditadura. Polemista por natureza, enfureceu as feministas, dentre outras críticas, ao declarar, no embalo de Garota de Ipanema, de Vinícius e Tom, que "o melhor movimento feminino ainda é o dos quadris".
Ainda entre amigos, polemizou com seu colega Ziraldo, que havia requisitado indenização pelo sofrido ditadura, já que, segundo ele, nenhum idealista deveria lucrar com seu ideal. Polemizou ainda com o deputado Aldo Rebelo, que propunha a restrição dos estrangeirismos na língua portuguesa. Segundo Millôr, a proposta era idioletantismo, ou seja, um dialeto particular. Segundo Aldo, estava sendo chamado de idiota, o que gerou a resposta de Millôr: "Estava, mas ele não podia provar".
Ainda no campo da língua, mas mais simbólico de todos, talvez tenha sido o acontecido na década de 1960, quando o editor de O Cruzeiro, tentando lhe facilitar as coisas, afirmou que teria liberdade total no seu espaço, obtendo a seguinte resposta do escritor: "Você vai me perdoar, mas ninguém pode me dar liberdade. Pode tirar, mas dar, não pode".
A defesa ferrenha da integridade de seu espaço criativo foi, desde sempre, a sua a maior batalha – ou mesmo a própria guerra. Apontado por muitos como um dos maiores artistas brasileiros e um dos de maior inserção na vida nacional, Millôr Fernandes filia-se a uma tradição da cultura brasileira que despreza o oficial, um frasista que perde o amigo, mas não a ética, que sabe que a liberdade individual se sobrepõe a qualquer ideologia ou governo e que faz do humor "a quintessência da seriedade".
E é em homenagem a esse pensador – que em 16 de agosto estaria fazendo cem anos – que propomos a criação no calendário do Millôr Day.
(*) Doutor em Letras, autor de "Millôres Dias Virão" (Libretos, 2013)
Celebração pelo centenário
Um encontro vai homenagear Millôr Fernandes (1923-2012) no dia de seu centenário. Estarão reunidos, Sala Álvaro Moreyra do Centro Municipal de Cultura (Avenida Erico Verissimo, 307, em Porto Alegre), o cartunista Santiago, o psicanalista Abrão Slavutzky e Breno Serafini, que defendeu tese de doutorado sobre Millôr no Instituto de Letras da UFRGS.