Por Clóvis Malta
Jornalista e escritor
Todos os amigos de Caio Fernando Abreu têm cartas escritas por ele. Nunca cheguei a estar entre esses amigos, nem fiz parte do círculo íntimo do escritor. Então, por que guardo há quase 50 anos uma carta de três páginas datilografadas por ele? Porque é a resposta a uma correspondência anônima que enviei ao Caio na minha adolescência. Sempre gostei de me comunicar com meus ídolos, e, no caso de Caio, minha fonte de inspiração na literatura, resolvi não assinar. Talvez por ele ser alguém geograficamente próximo, mas mais pela timidez juvenil, que era imensa.
Em 1974, Caio já era um autor conhecido. O detalhe do anonimato teve o efeito de um maremoto na cabeça dele. Só me dei conta disso ao ver publicada na Zero Hora uma versão da resposta para mim, o incógnito. Foi a minha vez de entrar numa zona de turbulência, sem saber como chegar à margem.
Convivi com o Caio depois, ao integrar um grupo composto por “autores de mimeógrafo”, músicos e artistas que faziam algo mais tarde rotulado de “marginal”, conectado com o período de opressão. Magnânimo, Caio incentivava as experimentações. Na loucura daqueles tempos, tomei coragem e confessei ser o responsável pela mensagem que o levara a longos devaneios. Pedi perdão pela molecagem e recebi dele três páginas escritas à máquina, sem assinatura.
A resposta inspirou o conto Uma História Confusa, incluído no livro Ovelhas Negras (1995). A leitura de ambos os textos – carta e conto – ajuda a entender singularidades do processo criativo desse desbravador de caminhos na cultura. No conto, Caio viaja pela mente, expõe uma solidão gigante, que é tema crucial de sua escrita, e comove pela tentativa atormentada de descobrir o autor da carta. Esse alguém já não era eu, mas um personagem aprimorado pela sua fantasia – tudo narrado em frases tão dilacerantes e poéticas, que ainda hoje me arrependo tardiamente de meu ato.
O texto do Caio me fez entender para sempre a força que têm as palavras. Foi ao refletir sobre isso que decidi compartilhar, tantos anos depois, cada um dos termos da carta, todos eles, antes que tudo seja corroído pelo tempo, menos a obra desse autor admirável, que é eterna.
A resposta
Íntegra da carta enviada por Caio Fernando Abreu ao autor anônimo da correspondência que o inspiraria a escrever o conto “Uma História Confusa”:
Porto 26.9.74
Talvez um dia eu olhe atentamente para você e pense comigo mesmo: “Ah, então era ele”. Te entregarei esta carta, e outras pois pretendo escrever outras, quando me der vontade, ou quando você tornar a aparecer.
Ouça, você está fazendo muito mal em não se mostrar. Não para mim – para mim também, um pouco só, porque a minha cuca ficou cheia de estorinhas, e é muito estranho eu pensar que de repente, em qualquer lugar que eu esteja, pode ter alguém sabendo e sentindo uma porção de coisas a meu respeito. Faz mal pra você, ficar curtindo essa distância. Sei lá, depois de te ler eu me sinto remoto-e-inacessível como uma Diva dos anos 1930. O que não deixa de ter seu charme, além de ser muito estimulante. Afinal, é no mínimo muito “lisonjeiro” (palavrinha besta) saber que se é curtido assim como você me curte. Meu ego fica todo bobo... Mas é também absurdamente romântico, fora de época, até mesmo adolescente-juvenil-pueril e não entendo direito por que você não se mostra. Ficaria tudo mais real, não é? Pode ser que você esteja a fim de curtir um sonho, uma irrealidade, uma estória maravilhosa que se passa apenas na sua imaginação. O que é muito bonito, mas é também meio imaturo. Por que não enfrentar a barra cara a cara?
É uma pena não poder te dizer todas essas coisas pessoalmente. É uma pena não poder enviar esta carta.
Inteligentemente, você dá uma porção de dicas a seu respeito. Imagino, primeiro, que você seja um rapaz. Tenho quase certeza. E sei que você nasceu a 22 de setembro de 1954 – é portanto do 1º dia de Libra e tem 20 anos recém-feitos. Suponho, também, que você more na Sarmento Leite. E que tenha estado na conferência do Ernesto Bono, na GFU (saio muito pouco, e foi o único dia em que fiquei “sentado no carro, entre amigos”). Deduzo, também, que você deve ser muito chegado a pessoas chegadas a mim – se não você não saberia daquele trecho duma letra de Caetano incluída num conto que escrevi em Londres e publiquei em Minas Gerais, e falei disso para apenas três ou quatro pessoas MUITO chegadas.
Que que eu posso fazer? Bancar o detetive? Claro que darei minhas investigadas. A verdade é que você está louco para se dar a conhecer, e que eu também estou com uma vontade enorme de conhecê-lo. Mas prefiro esperar que pinte NATURALMENTE.
Chegue perto de mim. Eu não mordo. E estou precisando terrivelmente de um amigo. É a hora certa de você PINTAR. Por favor, pinte. Nos lugares onde vou tem sempre potes de gente a fim de falar comigo. Às vezes eu me defendo através delas. Tenho um medo pânico de gente.
Agora interrompi e fui ver a programação de aniversário da GFU. E o único lugar onde sei que você pinta. Mas marquei/dancei: o último “evento” foi há dois dias.
Hoje quando apanhei a sua carta, ainda fechada, tive certeza do que se tratava. E fiquei muito feliz, meio irritado – mas feliz. Depois saí na rua com a sensação estranha que, não sei explicar, mais ou menos isso: que tudo ganhava mais sentido agora, que alguém podia estar me observando sem que eu suspeitasse, em qualquer lugar.
Eu tenho estado totalmente desorientado – não em relação a você, mas em relação a essa coisa, “a vida”. Tudo avança muito lentamente e eu não tenho feito outra coisa senão esperar. Tinha vontade de falar de mim horas e horas. Fico sozinho o tempo todo, quando encontro alguém esse alguém invariavelmente está a fim de falar de si mesmo. E eu sempre gosto de ouvir. Mas as minhas coisas estão ficando guardadas, se acumulando, não ditas. Todo dia eu penso num amigo. Hoje comecei a pensar em você como sendo esse amigo. Você não sabe a “repercussão” da sua carta dentro de mim, você nem sequer sabe que eu estou aqui, agora, nove horas da noite, tomando ban-chá no meu quarto e te escrevendo, um incenso queimando, tentando de alguma maneira varar os seus medos e pedir pra você chegar perto. Eu precisava muito.
Rir na sua cara... Meu Deus, que cuquinha mais doentia! Que voltas e nós você tem aí dentro, hein, menino? Eu não riria de ninguém capaz de fazer o que você fez. É, essencialmente, uma coisa bonita. O bonito é sempre o mais importante (eis uma frase temerária). Só não entendo por que você não assume isso no plano real.
Aquele dia, na GFU, houve alguém que me olhou muito. Mas eu me confundi e já não sabia quem tinha olhado primeiro – se aquela pessoa estava apenas respondendo a um chamado que tinha sido meu. Eu não sei. Fico fazendo suposições. Era um rapaz duns 20 anos, mais ou menos como você deve ser. Se era você, eu quis te falar. Eu quis muito chegar perto e te falar – deve mesmo ter havido essa “ânsia muda” de que você fala.
Ouça, eu repito porque isso é muito importante: eu estou muito sozinho, eu não estou entendendo muito bem as pessoas e as coisas, tenho sentido uma sede incrível de chegar realmente perto de alguém – a culpa disso deve ser um pouco desses “eflúvios primaveris” que andam no ar, não sei. Mas, enfim, seria tão bom se você se mostrasse. Podia ser tão bonito.
Sobre o sonho acabado, você não entendeu. Uma espécie de sonho acabou. As coisas ganharam contornos mais duros. Depois dessa viagem eu estou vendo as coisas dum jeito que eu não via antes. Um jeito onde entram também a História e a Geografia. Um jeito que eu acho mais largo. Você ainda tem muito tempo e espaço pra dançar. Muito sonho pra sonhar. Mas um dia você vai saber que estar vivo é a única saída. E que não há saída quando se tem consciência de estar vivo.
Chegue perto de mim. Me olhe, me toque, me diga qualquer coisa ou não diga nada, sei lá. Já estou gostando muito de você. Não seja idiota, não deixe isso se perder, virar poeira, virar nada. Faz tanto tempo que estou guardando coisas para dar a alguém. Quem sabe esse alguém não é você? Por que você não tem a coragem de arriscar? Só jogando é que você tem a possibilidade de ganhar, eu acho.
Sei lá. Deve haver um jeito de tudo isso o que eu estou pensando e sentindo atravessar a janela, telhados e paredes, para chegar ao lugar onde você está agora, entrar devagar na sua cuca. E que você sinta, sem saber por que, um impulso irresistível de escrever novamente dando uma pista mais clara. Sei lá.
Quero um dia poder te entregar isto aqui.
Fico esperando.
O conto
Trecho inicial de “Uma História Confusa”, conto publicado por Caio Fernando Abreu em 1995, no livro “Ovelhas Negras”. O conto foi inspirado na carta anônima recebida pelo escritor e enviada por Clóvis Malta 21 anos antes, em 1974. “Ovelhas Negras” está disponível em edição pocket pela L&PM (R$ 16,90 o e-book e R$ 31,90 impresso em lpm.com.br).
Era quinta-feira. Como nas últimas quintas, ele estava muito nervoso e trazia um envelope na mão. Jogou o envelope em cima da mesa, ficou andando pelo quarto.
– Outra carta? – perguntei.
Não respondeu. Só fez um movimento impaciente com os ombros, que podia significar muitas coisas. Mas não disse nada. Eu então abri e li as palavras datilografadas com cuidado:
“Te vi por detrás das rosas e havia nos teus olhos uma ânsia muda. Algo assim como se quisesses falar comigo. Juro que na saída tentei me aproximar. Mas tive medo. Sei que ainda vamos ser amigos. Não quero forçar nada. Hoje é domingo pouco antes do almoço. A casa está vazia. Eu gostaria de ter escrito logo depois daquela noite. É incrível, mas há duas décadas, nesse mesmo dia da semana, nessa mesma hora, eu estava nascendo.”
– É bonito – eu arrisquei. – Um pouco juvenil, talvez. Mas bonito. Afinal, a adolescência é sempre bonita.
– Ele tem vinte anos.
– Ele? Como é que você sabe que é ele e não ela?
– Eu acho, eu sinto. Uma mulher não escreveria essas coisas. Não sei, o jeito de escrever, alguma coisa.
– Pode ser – eu disse.
– E tinha uma outra carta, acho que não mostrei a você. Ele dizia que estava cansado, isso mesmo, cansado e não cansada.
– Não lembro – menti. – E ele pode estar mentindo. Essa data, por exemplo, essa data pode ser inventada.
Ele evitou meus olhos ao contar:
– Fui consultar um astrólogo. Ele nasceu a 22 de setembro de 1954. Entre mais ou menos dez e meio-dia. É de Virgem, o astrólogo disse, do último dia de Virgem. Pelos cálculos, o ascendente deve ser Escorpião.
– Ascendente?
– É o signo que – ele levantou os olhos, irritado. – Escuta, você não vai querer agora que eu te dê uma aula de astrologia, vai?
– Não, não. Só queria saber o que quer dizer isso.
– Quer dizer que ele deve ser inteligente. Muito inteligente. E secreto, misterioso, intenso. Só pelas cartas qualquer um percebe que ele tem certa... Certa estrutura.
(...)