Por Doris Couto
Mestre em Museologia e Patrimônio pela UFRGS, diretora do Museu Julio de Castilhos
O tempo, que é implacável aos humanos degenerando sua forma física, parece edificar e consolidar as histórias institucionais que, tal qual pessoas, sobrevivem aos dias entre altos e baixos, alegrias e tristezas, lembranças e esquecimentos.
O museu, lugar que guarda, em tese, o que não é para ser esquecido, faz isso de modo seletivo e comandado por interesses. Assim se mantêm vivos os heróis do passado, os feitos da humanidade de outros tempos, os rastros da existência do homem na sua complexidade e extensão, mas jamais em todas as suas versões.
Museus são, por excelência, lugares de memórias coletivas e de memórias individuais da elite e têm nos objetos que guardam a função de promover lembranças, aproximando-se de uma cápsula do tempo, não para que se volte a eles, porque não é possível recuperar a experiência do que se passou com o outro; essa é uma experiência individual, única e a qual nem o próprio sujeito que a viveu pode ressuscitar em sua inteireza.
Mas esses espaços carregados de fragmentos do ontem nos ajudam a entender o hoje e a imaginar o que os nossos antepassados viveram, fazendo-nos decidir o que queremos manter vivo sobre nós para o acesso das gerações futuras.
Alguns desses objetos, bem escolhidos por vezes, simples descarte de coisas velhas por outras, vão parar nos museus desprovidos de suas funções originais, raras vezes acompanhados da história de vida de quem os usou, equiparando-se às pedras tumulares em que a inscrição “aqui jaz fulano de tal” é feita para perpassar o esquecimento e ascender às lembranças.
Criado pelo Decreto Lei nº 589, de 30 de janeiro de 1903, pelo então presidente do Estado, Borges de Medeiros, e denominado “Museu do Estado”, nascia o atual Museu Julio de Castilhos, nome recebido em 1907 em homenagem ao político positivista morto precocemente por um câncer.
Funcionou de modo temporário em dois pavilhões da Exposição Estadual de 1901, erguidos no Parque Farroupilha, a Redenção, em Porto Alegre, e herdou peças de vários municípios que haviam participado da exposição e seus gestores. Nos anos iniciais, organizaram expedições de coletas de tudo o que pudesse ser exemplar das diversas regiões do Rio Grande do Sul.
Ganhou sede própria em 1905, quando o governo gaúcho comprou a casa em que residiu, a partir de 1889, Julio de Castilhos e sua família.
Se ainda hoje os museus ocupam espaços projetados originalmente para residência, àquela época era inimaginável construir um edifício especificamente para o Museu Julio: a noção equivocada de que qualquer espaço pode virar museu fez com que os cômodos por onde transitaram Julio, Honorina e sua prole logo estivessem abarrotados e sem lugar para expor o vasto acervo que se formara por meio de doações, coletas e compras.
Nas primeiras décadas, tudo era exemplar do que podia nos representar enquanto gaúchos: coleções de zoologia (patrimônio biológico, com vertebrados e invertebrados), botânica (biodiversidade de plantas), coleção mineral (rocha, sedimento ou solo), artefatos indígenas, objetos pessoais, maquinaria e obras de arte.
Sem espaço e sem uma vocação específica, em 1950, as coleções são desmembradas e dão origem ao Museu de História Natural (atual Museu da Fundação Zoobotânica), ao Museu de Arte (atual Margs) e ao Arquivo Histórico do Estado.
Em 1975, o prédio ao lado, que fora a residência de Sebastião Velho, foi desapropriado e, em 1996, foi anexado à Casa Julio de Castilhos para ampliar a área do museu. Suas portas se abriram e se fecharam inúmeras vezes, e seu acervo nem sempre teve os cuidados adequados.
Ao comemorar os seus 118 anos, o museu comemora também investimentos da Secretaria de Estado da Cultura e de convênio com o Ministério da Justiça que possibilitarão seu restauro completo, e vem recebendo conservação preventiva das edificações e especialmente em seu acervo, instaurando uma era de ação técnica em museologia que deveria haver em todos os museus, afinal, como diz Calle e Simon, “somos sempre condenados ao tempo” e às memórias e lembranças do caminho.