Por Luís Francisco Wasilewski
Doutor em Literatura Brasileira pela USP, pós-doutorando na UFRJ
Eles formaram um grupo que ficou conhecido como “A geração de dramaturgos 1969”. De forma debochada, comentava-se que não havia número mais apropriado para definir a escrita de Isabel Câmara, Consuelo de Castro, Leilah Assumpção, José Vicente e Antônio Bivar, falecido no domingo, dia 5 de julho. Pela primeira vez no teatro brasileiro, a sexualidade, em suas variadas formas de expressão, era tema de peças como Fala Baixo Senão Eu Grito, de Leilah, As Moças, de Isabel, e Cordélia Brasil, de Bivar (1939-2020). Esta última chegou aos palcos, em 1968, com Norma Bengell interpretando o papel-título.
A peça mostrava uma mulher que se prostitui para sustentar seu marido, Leônidas. Eis que Cordélia surge com o jovem chamado Rico, e isto criava em cena aquilo que, nos dias de hoje, chamamos de trisal. Em uma das sessões do espetáculo em São Paulo, Norma foi presa pelo Exército e levada para um interrogatório de cinco horas.
Se aquele teatro estava incomodando o regime militar, que governava o Brasil, também era desprezado por parte da esquerda, que considerava a sexualidade um tema secundário e não merecedor de ser temática da cena teatral em guerra contra a ditadura. Bivar sempre lembrava a máxima de Plínio Marcos dizendo: “Enquanto estamos lutando pelo arroz e feijão, lá vem o Bivar trazendo a sobremesa”.
Também abordando a sexualidade e o consumo de drogas como o ácido, escreveu outra de suas importantes peças. Faço referência à Alzira Power, encenada em 1969. Nesta, ele mostra uma mulher louca e desbundada que aprisiona em seu apartamento um vendedor, fazendo dele um escravo sexual e lisérgico. A montagem do espetáculo foi consagradora para as carreiras teatrais de Yolanda Cardoso e Antônio Fagundes. Tanto Cordélia Brasil quanto Alzira Power foram montadas pelo Teatro de Arena, em Porto Alegre – e sofreram com a censura dos militares.
A década de 1970 é marcada por períodos nos quais Bivar viveu exilado em Londres. O resultado dessa experiência apareceu transformada em belas obras literárias como os livros de memórias Verdes Vales do Fim do Mundo e Perseverança, lançado no ano passado. Bivar foi um dos melhores memorialistas da nossa literatura. Sua narrativa tem o mérito de reconstituir com precisão fatos e pessoas importantes da cultura brasileira.
Outra faceta de sua múltipla personalidade era a atuação como diretor de shows musicais. Maria Bethânia, Rita Lee, Simone e Leandro e Leonardo tiveram espetáculos assinados por ele. Na década de 1980, lançou pela editora brasiliense O que É Punk? e concomitantemente organizou, em 1982, o icônico Festival Punk Começo do Fim do Mundo, realizado em São Paulo e que lhe transformou em guru daquela geração que experimentava um novo tipo de transgressão nos costumes.
Minha amizade com ele começou em 28 de outubro de 2010, no lançamento coletivo da Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Estávamos os dois assinando livros pela coleção, ele a sua biografia Antônio Bivar: o Explorador das Emoções Peregrinas, escrito por sua amiga e colega de desbunde Maria Lúcia Dahl, e eu, Isto É Besteirol: o Teatro de Vicente Pereira, biografia do dramaturgo criador do Teatro Besteirol. Nossas conversas no Facebook eram hilárias. Falávamos de Dulcina de Moraes, da vedete gaúcha Eloína Ferraz (uma paixão que tínhamos em comum), da travesti Brigitte de Búzios (que chegou a interpretar Alzira Power em uma encenação carioca, batizada de Qual É Gatinho?, sob direção de Amir Haddad), bem como de Negra Miranda Jordão, figura marcante da alta sociedade carioca.
Uma de suas confissões, por mim registradas, foi a de que Clodovil teria criado o termo “saia justa” para designar uma situação incômoda. Bivar me relatou que estava assistindo ao programa TV Mulher e viu o estilista usar a expressão que, posteriormente, ele e Caio Fernando Abreu passaram a registrar em suas crônicas para revistas como Gallery Around e o jornal O Estado de S. Paulo, no qual os dois, por um longo tempo, foram colunistas alternantes na edição dominical.
Também era fascinante vê-lo registrar nas redes sociais o exercício da figura do flâneur pelas ruas de São Paulo. Lembro do prazer compartilhado por Bivar quando descobriu a existência da Praça John Herbert, que homenageia o ator na capital paulista. Mesmo durante a pandemia do coronavírus Bivar não perdeu o hábito de singrar pela cidade, apesar do apelo de vários amigos. Afinal, onde havia uma norma estabelecida, sua vontade era a de sempre transgredir. Infelizmente, por causa de sua eterna rebeldia, acabamos perdendo esse dândi tão importante para a cultura brasileira.