Com mais de 20 anos de sucesso como cantor, em dupla com Rogério Melo, César Oliveira também tem trabalhado na linha de frente de instituições culturais e políticas para promover o regionalismo gaúcho. Vice-presidente administrativo do MTG, presidente da Comissão Estadual dos Festejos Farroupilhas e adido cultural do Rio Grande do Sul, o músico tem se dedicado a fortalecer os vínculos entre cultura local e turismo no Estado. Nesta semana, ele comemorou o avanço da Lei Aldir Blanc, sancionada pelo Palácio do Planalto, que deve destinar R$ 3 bilhões para a cultura durante a pandemia.
Como adido cultural do RS, o senhor trabalhou pela aprovação da Lei Aldir Blanc. Como se deu esse processo?
É uma lei que foi muito contestada, mas por conta de rixas entre esquerda e direita, já que foi elaborada pela esquerda, pela deputada Benedita da Silva (PT-RJ). Foi criada para ajudar o setor artístico, já que é o último que vai voltar a funcionar. E foi um projeto mais do que acertado, independente do viés ideológico com o qual se olhe. Daqui do Sul, fizemos um grande trabalho para a aprovação. Eu a Secretária de Cultura do Estado nos mobilizamos para incluir os centros de tradições entre as instituições culturais que poderiam ser beneficiadas no PL. Foi um grande fator de convencimento, já que não há parlamentar sem CTG na sua cidade ou pelo menos alguém da sua equipe vinculado culturalmente com o Sul. A bancada daqui também começou a pulverizar a ideia de que a lei apoiava não só o tradicionalismo gaúcho, mas todos os regionalismos, e cada parlamentar ligado ao regionalismo da sua terra também ajudou no convencimento.
Como o RS pode se beneficiar da Lei Aldir Blanc?
A gente sabe do despreparo de grande parte dos municípios, porque a verba teria de vir para um fundo de cultura. E devem existir aqui no máximo 35 municípios com fundo de cultura próprio. Muitas vezes, a Cultura é tratada como terceiro escalão nas prefeituras, sem equipes qualificadas. Mas essa verba pode ajudar muito nos festejos virtuais farroupilhas. Já que não será possível fazer uma Semana Farroupilha presencial, que a Cultura se alinhe com o Turismo para potencializar a identidade cultural de sua cidade. Tenho trabalhado muito com o diretor artístico Edson Erdmann para elaborar meios de o audiovisual promover nossa identidade e, por consequência, nosso turismo.
Como será a Semana Farroupilha em tempos de pandemia?
A Semana Farroupilha presencial não vai acontecer. Existe a questão de impulsionar uma Semana Farroupilha virtual, oportunidade para que o gaúcho consuma o que tem aqui e comece a conhecer o turismo dentro do RS. Um investimento baixo com capacidade de exposição gigantesca.
O que avalia que é preciso mudar no MTG?
O MTG é quem rege toda a nossa identidade cultural. Mas faz cultura de dentro para dentro. E eu sempre penso que temos que fazer cultura de dentro para fora. Temos uma cadeia cultural gigantesca. Não usufruímos do manancial que possuímos por conta das nossas outras riquezas. O Nordeste é um ótimo exemplo para observar. Os festejos juninos não estão acontecendo agora, por conta da pandemia, mas produzem grande riqueza e benefícios para os municípios.
Mas aí há uma grande vinculação da cultura com o turismo, o que não é tão presente aqui.
Turismo é uma vertente financeira muito saudável. O Nordeste não possui soja, gado, trigo ou a água que nós possuímos. A partir dessa carência, realizaram feitos incríveis, como transformar Lampião em um mito nacional. Nós aqui não conseguimos explorar nossos heróis. Lá, há quadrilhas que dançam o ano todo, sustentando milhares de famílias. Aqui, temos 40 mil dançarinos que pagam para dançar.
O senhor afirmou que, historicamente, o RS nunca explorou sua cultura em todo o potencial por não ter necessidade, já que o Estado possui outras riquezas. É o único motivo?
Não. Há também o preconceito, o bairrismo. “É meu, é nosso, tem que ficar aqui.” Quanto mais orgulho sentirmos da nossa cultura sendo levada para fora, mais autênticos seremos. Ser autêntico não é criar regras. Ouço gente dizendo que não se amarra lenço de tal jeito, que não se usa bombacha de tal tamanho. Eu digo para essas pessoas reclamarem quando ninguém mais usar bombacha. Autenticidade não se dá por imposição. Aos poucos estamos quebrando esse paradigma de normas dentro do movimento. No MTG, é proibido usar boina em algumas ocasiões. E eu uso boina. Precisamos quebrar os preconceitos. A homofobia e o racismo também precisam ser quebrados.
O MTG está mais inclusivo?
Sim. Não há como fingir que a homossexualidade não existe, inclusive dentro do movimento. Meu filho pode ser homossexual, e eu não vou deixar de amá-lo. E nem vou esconder. Isso não é uma doença. São seres humanos. O negro é de suma importância para a história do RS. É fundamental. Temos que respeitar nosso passado e nossos povos.
É um momento de criar diálogos e acabar com preconceitos?
Sim, mas é principalmente um momento de se reinventar. E nossa riqueza para a reinvenção está nas nossas mãos. Sabemos o que deu certo internamente e o que já foi capaz de ganhar projeção. Agora é cuidar do solo, plantar e jogar para fora o nosso produto. A colheita não será muito distante. Nossa cultura é muito ampla e variada. Na Costa Doce, as maiores festas populares são as de Iemanjá. É uma festa de cultura religiosa. O rock gaúcho levou nossa linguagem para fora do Rio Grande do Sul. As bandas de reggae daqui usavam bombacha. O João Vicente toca no Nenhum de Nós de chapéu. Isso é uma coisa incrível. Quando falamos em cultura regional, temos que abarcar tudo isso. Tudo isso ajuda nossa cultura de raiz a sobreviver. Se não projetarmos nossa cultura para fora, a globalização vai devorá-la.
Porto Alegre poderia representar melhor a cultura do Interior?
Quando alguém chega em Salvador, vê um acarajé em cada esquina. A população toma para si esse turismo. Já imaginou se todas as pessoas que chegassem a Porto Alegre pudessem acessar um parque em que o Laçador estivesse no centro, para as pessoas tirarem fotos? Um parque onde os turistas levariam inúmeros laçadorzinhos, assim como quem chega na Torre Eiffel e pode levar uma torrezinha para casa. A gente leva a identidade de um povo por meio de seus monumentos e seus heróis. Em todos os países, os heróis estão nas praças centrais. Onde está o Laçador? Onde está o Monumento a Bento Gonçalves? Este, é capaz de 99% da população não saber. Em Viena, Strauss está na Praça Central. Aí vão me dizer: “ah, mas lá é Europa, tudo funciona, não tem como comparar”. Não é só na Europa. Vá a Montevidéu e veja onde está o Mausoléu de Artigas.
Por onde começar essa retomada?
Há 16 anos venho batalhando no poder público pela nossa cultura. Há nove anos, propago a ideia do Parque da Harmonia ser um ponto de referência turística, abrindo o guarda-chuva para o Estado explorar a cultura. A primeira coisa a ser feita é uma comunicação mais efetiva, e que as pessoas abandonem a vaidade e o egocentrismo. É preciso trabalhar de uma maneira visionário, enxergando em benefício ao povo, para ter continuidade, não imediatismo.
Sobre o Parque da Harmonia, há alguma perspectiva para essa transformação?
O edital de concessão do parque deverá abrir em breve. Mas aí vem mais uma questão: a concessão pode ser aberta, mas é preciso alguém com conhecimento e identidade assumir. Tudo vai depender da concessão. Mas já falei para o prefeito: imagina colocar o Laçador no meio do parque e ter casas de todas as etnias em volta. A partir de cada casa, lançar um roteiro turístico, para as Missões, para a Serra, para a Costa Doce… E deixar o Laçador no meio porque ele é o gaúcho. Todas as raças ajudaram a forjar o gaúcho do Rio Grande do Sul.