Everton Cardoso*
O enorme crucifixo que a Estação Primeira de Mangueira fez cruzar a Sapucaí foi, sem dúvida, um dos emblemas do Carnaval deste ano: a potência estética e artística da imagem esteve em trazer um Jesus negro, tatuado, de cabelo descolorido, com bigode fino e o corpo cravejado de tiros — uma imagem infelizmente muito frequente no noticiário brasileiro e no dia a dia de uma parte muito grande de nossa população. E é exatamente nessa dupla ruptura proposta pelo carnavalesco Leandro Vieira que está o grande mérito — e a grande polêmica — do desfile: a festa profana que costuma transgredir regras e limites desconstrói a imagem de uma figura que, com o passar dos tempos, ganhou contornos cada vez mais europeizados e sacralizados e cujo nome já foi usado com as mais diversas motivações.
Antes de chegar à passarela, ainda nos bastidores, o gigante crucifixo estava deitado e a parte superior de Cristo, coberta por um pano branco. No tecido, a inscrição "Lembrança do Senhor do Bonfim" repetidas vezes — como que nas já muito características fitinhas de devoção. Ali, diante dos olhos dos componentes que aguardavam a entrada, integrantes da produção subiram em escadas e, com dificuldade, acoplaram ponteiras douradas que davam acabamento às hastes horizontais da cruz. Àqueles trabalhadores do Carnaval, aplausos entusiasmados quando do sucesso de sua ação. Retirado o pano, a imagem foi pouco a pouco sendo levantada — não sem certa dificuldade para desviar de obstáculos como lâmpadas e árvores, tampouco sem um esforço que exigiu cooperação para ser superado. No episódio, a ação em conjunto da comunidade do morro e seus efeitos servem de complemento à pertinente proposta artística da noite.
As demais representações de Jesus também foram emblemáticas. O mestre-sala Matheus Oliverio era um Cristo com longos cabelos afro e fazia o papel de conduzir e cortejar a Estação Primeira, encarnada pela porta bandeira Squel Jorgea. A dança de ambos foi harmoniosa, hábil e anunciou com força que a união entre o salvador e a agremiação teria um lindo resultado. A rainha da bateria, Evelyn Bastos, veio coroada de espinhos, ensanguentada e com um vestido roxo. Não sambou, mas interpretou o “corpo de mulher” que também encarna o Cristo. Mais uma vez, é ela quem constrói um novo papel para a figura que vem à frente dos ritmistas, como já vem fazendo ao longo de sua carreira. Somaram-se a eles a personificação trazida pelo pastor Henrique Vieira em uma alegoria: qual uma pessoa em situação de rua, vinha maltrapilho. Montava um burro e estava sobre um altar barroco, dourado. Na oposição entre o mais simples e o extremamente luxuoso estava o Cristo pobre da narrativa bíblica contraposto àquele erguido séculos depois aos altares para não ser mais “da gente” e, sim, pertencer a apenas alguns.
A canção composta por Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo reforçou o quanto a junção de gênios é capaz de nos fazer deslocar o olhar para vermos o que já estamos habituados de outra forma. Partindo da já brilhante ideia do carnavalesco da escola, compuseram uma melodia e uma letra que contém trechos que podem — oxalá! — ser repetidos como verdadeiras máximas filosóficas vindas deste mais característico gênero musical brasileiro. “Não existe futuro sem partilha”, apenas para citar um exemplo. Isso sem contar o trecho “desce e sobe ladeira”, que faz uma interessante inversão do “tudo que sobre tem que descer” que descreve a grosso modo a gravidade. Tira-nos, assim, do asfalto e nos transporta para a perspectiva de quem nasce e vive no alto do morro.
Ao final, o encerramento com a celebração da volta de Cristo à vida num "cordão da liberdade". Vinham Marias Madalenas com as cores da diversidade; festivos bate-bolas - personagens da folia carioca -; e muitas imagens de Jesus como que maquiado à maneira que o artista pop estadunidense Andy Warhol usou em seus icônicos retratos de Marylin Monroe, a estrela de cinema cuja fama foi ao mesmo tempo sua glória e a maior violência que sofreu. Abriu-se, assim, caminho para um festivo retorno do Messias à vida no morro de Mangueira. Os barracos, os baluartes da escola e mulheres vestidas como o fazem as funkeiras emolduravam a síntese deste momento: um Cristo negro subia aos céus alçado por balões verde e rosa em forma de coração.
Como destaque da alegoria, Leci Brandão era uma apropriada metáfora para aquele cortejo rumo à Apoteose. Mulher negra, sambista, deputada estadual em São Paulo e mangueirense histórica, encarna, por onde quer que passe, uma síntese do que é este país e de como ele poderia ser se as estruturas se movessem. Sendo quem é e tendo rompido com os preconceitos que rompeu, é a personificação de um tipo muito brasileiro de heroísmo. Exatamente por isso, Leci — assim como este carnaval da Estação Primeira — é retrato do ainda entristecedor presente, mas é também evidência de que o futuro pode ser sonhado: que o Brasil seja, como já ecoou no ano passado no mesmo Sambódromo, um país de Lecis e Jamelões, e também uma terra de muitos Jesuses nas versões desejadas por Mangueira.
* Jornalista e crítico cultural