Entre impasses e alterações, tal qual fosse uma bola de pinball sendo rebatida de uma parede a outra, a pasta da Cultura tem passado por idas e vindas constantes desde o governo do ex-presidente Michel Temer (2016-18). Não foi diferente no primeiro ano de Presidência de Jair Bolsonaro. A última mudança ocorreu no dia 7 deste mês. Um decreto publicado no Diário Oficial da União transferiu a Secretaria Especial de Cultura do Ministério da Cidadania, comandado por Osmar Terra, para o do Turismo, chefiado por Marcelo Álvaro Antônio. Conforme Terra, a troca de pasta ocorre por motivos operacionais, pois as demandas da secretaria o estavam sobrecarregando.
— Uma área específica que é a cultura estava me consumindo um tempo gigantesco para organizar — justificou.
Assinada pelo presidente Jair Bolsonaro, a mudança ocorreu um dia após o economista Ricardo Braga ter sido exonerado da subpasta. Quem assumiu a secretaria foi o dramaturgo Roberto Alvim. Antes disso, a Cultura perdeu status de ministério e passou por tensões, em especial em relação às políticas de incentivo, que culminaram com a alteração da chamada Lei Rouanet, além de controvérsias que reacenderam a discussão sobre a censura à produção artística.
Em maio de 2016, quando Temer assumiu a Presidência interinamente, o Ministério da Cultura (MinC) tornou-se uma secretaria vinculada à Educação. O fim do MinC gerou protestos de realizadores de arte e cultura, que ocuparam prédios ligados à pasta pelo país. O governo recuou e, em menos de duas semanas, a Cultura voltou a ter status de ministério.
O primeiro ministro de Temer na pasta foi Marcelo Calero, que durou seis meses no cargo. Calero teve uma passagem turbulenta pelo MinC, enfrentando resistências do setor e, após a sua saída, relatou que era pressionado pelo presidente e pelo então ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, a obter um parecer favorável do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para um empreendimento imobiliário localizado numa área histórica de Salvador. Na ocasião, Calero também diz ter feito gravações telefônicas com o intuito de “se proteger” de eventuais represálias.
Depois dele, passaram pela pasta Roberto Freire, João Batista de Andrade (interinamente) e Sérgio Sá Leitão. Além da instabilidade política do governo e da descontinuidade de gestão a cada mudança – em dois anos e meio com Temer na presidência, quatro nomes estiveram à frente da pasta –, o MinC também enfrentou cortes de gastos de 43%.
11 meses, três secretários
Após Bolsonaro assumir a Presidência, o MinC se transformou em uma secretaria especial que foi incorporada ao Ministério da Cidadania. Coube ao gaúcho Henrique Medeiros Pires assumir a subpasta. No entanto, a instabilidade na Cultura prosseguiu. Em agosto, Pires pediu demissão do cargo após a suspensão de um edital de projetos LGBT+ para TVs públicas. Na ocasião, ele disse que há oito meses tentava contornar diversas tentativas de cerceamento à liberdade de expressão. No entanto, em entrevista ao programa Timeline, da Rádio Gaúcha, a versão de Terra foi outra:
— Tive problemas com o secretário que indiquei (Henrique Pires) e tive que tirá-lo. Estava me consumindo na gestão. Ele não estava fazendo muita coisa. Foi um pedido que fiz para o secretário (deixar o cargo), ele não se demitiu. Foi convidado a sair. Ofereci até outra função para ele. Tudo isso desgasta — disse o ministro.
No lugar de Pires, o economista Ricardo Braga assumiu o cargo, mas durou apenas dois meses, transferindo-se para a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação.
No dia 7 de novembro, o dramaturgo Roberto Alvim, com sólida carreira no teatro e até então era diretor do Centro de Artes Cênicas da Fundação Nacional das Artes (Funarte), foi nomeado o novo secretário da Cultura. Antes de assumir a pasta, em setembro, ele comprou briga com o meio artístico ao atacar a atriz Fernanda Montenegro, que na ocasião posou para uma campanha contra a censura: na capa da revista Quatro Cinco Um, ela apareceu vestida de bruxa em uma fogueira de livros. Alvim acusou Fernanda de ser “mentirosa” e disse sentir desprezo por ela. A adesão do dramaturgo a Jair Bolsonaro também gerou críticas de seus pares e de atores com quem ele havia trabalhado.
Entre as mudanças mais significativas propostas pela Cultura no governo Bolsonaro estão as novas regras da Lei Rouanet (agora chamada de Lei de Incentivo à Cultura), que foram formalizadas pelo Ministério da Cidadania, em abril. Cada projeto terá a partir de agora um teto de R$ 1 milhão – e não mais de R$ 60 milhões, como ocorria até então. Esse teto não atinge os planos anuais e plurianuais de atividades, os projetos sobre patrimônio cultural material e imaterial, além dos museus, assim como conservação, construção e implantação de equipamentos culturais.
A construção e a manutenção de salas de cinema e de teatro em municípios com menos de 100 mil habitantes também estão fora do teto. Já outros projetos como óperas, festivais, concertos sinfônicos, desfiles festivos e corpos artísticos estáveis terão um limite maior, de R$ 6 milhões. Além deles, datas comemorativas nacionais, eventos literários e exposições de artes visuais também terão o teto ampliado.
A própria noção de cultura se ampliou no que diz respeito às possibilidades de uso de verba pública para financiar projetos via renúncia fiscal. No começo de novembro, a Comissão de Cultura da Câmara de Deputados aprovou um projeto de lei que reconhece a música religiosa e eventos promovidos por igrejas como manifestações culturais que podem utilizar mecanismos de fomento da Lei Rouanet.
A proposta ainda será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em caráter conclusivo. Caso seja aprovada, a lei vai para votação no Senado sem precisar passar pelo plenário da Câmara.
Antes, em agosto, o governo suspendeu um edital para a seleção de produções audiovisuais para a TV. O processo, que prevê a categoria “diversidade de gênero” para documentários televisivos, foi criticado pelo presidente Bolsonaro, que atacou produções de temática LGBT+ que participam da seleção.
A portaria foi editada pela pasta da Cidadania. Cada título poderia ser contemplado com verbas entre R$ 400 mil e R$ 800 mil, via Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Mas esse recorte específico criticado pelo presidente faz parte de um total de 80 projetos que seriam contemplados no edital suspenso, lançado em março de 2018, com recursos previstos de R$ 70 milhões. A diversidade proposta engloba 12 categorias, entre elas raça, religião e meio ambiente.
Um dos afetados nessa suspensão foi Allan Deberton, diretor do longa Pacarrete, que recebeu oito kikitos no mais recente Festival de Cinema de Gramado. Deberton é produtor da série Transversais, que conta a história de cinco cearenses transgêneros. Para o cineasta, a atitude do presidente configura um desrespeito à classe:
— Está instaurada a censura. A portaria mexe com a questão da diversidade da produção, que é característica do cinema brasileiro. Somos reconhecidos internacionalmente por esse motivo. Somos diversos porque falamos sobre vários temas.
Osmar Terra justificou:
— Isso não é censura, não é proibir de passar na TV ou no cinema. Tem que se discutir qual é a pauta que será financiada pelo dinheiro público. Acho que o filme, para passar em TV pública, tem que ser educativo, contar histórias, ver os heróis de um país, para crianças.
Em outubro, a 11ª Vara Federal do Rio de Janeiro derrubou a portaria por meio de liminar. A ação civil foi movida pelo Ministério Público Federal (MPF), que concluiu que a portaria foi “motivada por discriminação por orientação sexual e identidade de gênero”. Segundo a Justiça, a suspensão do concurso causou prejuízo ao patrimônio federal de quase R$ 1,8 milhão, referindo-se às despesas já realizadas. O governo tentou reverter a decisão, mas teve o recurso negado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Fiscalização em xeque
Responsável pela regulação e fomento de filmes e séries, a Agência Nacional de Cinema (Ancine) passou muitos impasses em 2019. Antes vinculada ao Ministério da Cultura, depois à Cidadania e agora ao Turismo, a Ancine recebeu um ultimato do Tribunal de Contas da União (TCU), que determinou a suspensão do repasse de recursos públicos para o setor audiovisual caso a agência não mudasse a forma de prestação de contas.
Por meio de uma auditoria feita em 2017, foram constatadas irregularidades na fiscalização das finanças, em projetos com excesso de custos e falta de checagem nas contas das produções. A liberação de novos recursos e publicação de editais para a indústria audiovisual foi paralisada até a resolução do imbróglio.
Neste mês, o diretor-presidente da Ancine, Christian de Castro Oliveira, foi afastado do cargo por determinação da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. Ele é acusado pelos crimes de falsidade ideológica e estelionato em concurso material.
Para 2020, o governo apresentou um projeto de lei ao Poder Legislativo que prevê um corte de quase 43% do orçamento do FSA, mecanismo de financiamento de parte das obras audiovisuais produzidas no país reduzindo-o para R$ 415,3 milhões.
Depois de tanta turbulência, o momento atual é de espera. É que o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, afirmou que sua sua primeira ação à frente da Secretaria Especial de Cultura será a realização de um diagnóstico da pasta. Segundo o ministro, assim será possível formular um planejamento estratégico para as iniciativas na área. “Turismo e Cultura possuem pautas sinérgicas e atividades naturalmente integradas. A cultura é um dos principais atrativos turísticos do país e é responsável por grande parte da movimentação de visitantes nacionais e internacionais. O Brasil representa o nono país em atrativos culturais do mundo, segundo Índice de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial”, afirmou em nota.
Para Leandro Valiati, professor de economia e especialista em economia da cultura, essa transferência da secretaria para o Turismo pode inserir o setor cultural em uma perspectiva econômica importante, que vem da própria relação entre esses dois campos.
— (A união entre turismo e cultura) Pode dar mais linearidade para possíveis ações, mais convergência. A cultura pode ter uma posição mais importante na sua relação com o turismo — destaca Valiati, que, no entanto, ressalta ser difícil avaliar se a transferência de pasta é uma questão estratégica ou para resolver uma questão de curto prazo do governo, que ficou posto com a dificuldade de “encaixar” a cultura em alguma das pastas existentes (conforme o jornal O Globo, Bolsonaro cogitou levar a cultura para os ministérios da Educação e da Casa Civil, que rejeitaram a ideia):
— Isso torna um pouco problemática essa transferência. Também porque a cultura no ministério do Turismo talvez perca o escopo da política pública no que toca o valor social da cultura.
Ex-secretário Henrique Pires analisa que a junção da Cultura com a Cidadania não deu certo:
— Neste primeiro ano de governo, trabalha-se com orçamentos preparados em 2018, portanto, do governo Temer. Em 2020, teremos o primeiro orçamento feito pela gestão Bolsonaro. Parece que faltou planejamento, pois seria natural esperar reforços na estrutura para atingir as metas, não abandoná-las e recortar setores ainda nestes primeiros 12 meses de governo.
Segundo o ministro da Cidadania, o desejo do governo para a cultura é que a pauta conservadora avance na nova pasta. Segundo informações do jornal Folha de S.Paulo, Bolsonaro comentou em agosto com um grupo de jornalistas, no Quartel-General do Exército, em Brasília, que o presidente da Ancine deveria ser um evangélico que conseguisse recitar de cor “200 versículos bíblicos”, que tivesse os joelhos machucados de tanto ajoelhar e que andasse com a Bíblia debaixo do braço.