SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Para quem cresceu em uma "fábrica de histórias", os livros foram um dos caminhos possíveis para enxergar o mundo do lado de fora. O escritor Mia Couto nasceu Antônio Emílio Leite Couto, em 5 de julho de 1955, na cidade de Beira, em Moçambique, rodeado pelas memórias da mãe mescladas às poesias do pai.
"Era um lugar que era uma casa, mas que não se fechava para o mundo", diz o escritor que encheu o teatro do CEU (Centro Educacional Unificado) de Perus na noite desta segunda-feira (23).
Ele participou do encontro literário Áfricas, Memórias e Resistência, organizado pelo Coletivo de Educadores Perus-Pirituba, da zona noroeste de São Paulo, com apoio de Rita Chaves, especialista em literatura africana de língua portuguesa e professora da USP, que mediou o debate.
Os educadores lembraram do assassinato da menina Ágatha Felix, no Rio de Janeiro, e o papel da educação no Brasil. "Mais que nunca, a educação para a liberdade se faz necessária e Paulo Freire vive", pontuou na abertura o educador Márcio Bezerra.
Com uma fala carregada de generosidade, Mia Couto iniciou a palestra pedindo luzes. Para quem tem em sua natureza a observação e a escuta do outro, não era possível falar sem olhar para o rosto das mais de 400 pessoas presentes na plateia.
Autor de "Terra Sonâmbula", "O Fio das Missangas" e "Estórias Abensonhadas", o escritor foi agraciado também pelo Prêmio Camões e é hoje um dos maiores nomes da literatura de língua portuguesa.
"O meu lugar é esse, o lugar da margem. Eu venho de um país periférico, um continente e uma cidade completamente periférica", salienta, para dizer quão importante é para ele estar também nas bordas da capital paulista. "Normalmente, o circuito que é pensado para o escritor é pensado por uma lógica da editora. Não que seja perversa, de exclusão, mas outra lógica, que se pensa é onde se vende mais."
A literatura, para ele, deve ser o espaço da liberdade, principalmente em tempos de crise. "É uma espécie de uma bandeira que mostra que tem que haver um espaço de soberania das vozes das pessoas, contra a censura e tudo aquilo que pode ser uma tentativa de asfixiar a criatividade."
É dentro da liberdade que carrega as palavras que Mia narra as histórias ainda não ditas de Moçambique. Para o autor, o país vive uma amnésia coletiva, uma não memória que se alastra junto ao medo de viver um passado, que ainda não terminou: o da escravidão, da guerra civil, que perdurou 16 anos, ou da guerra de libertação nacional, de 1964 a 1969.
"Pouca gente diz sobre a escravatura. E é óbvio que ninguém quer trazer, pois traz a ideia de conflitos que nunca foram resolvidos."
Mas falar sobre Moçambique é também mostrar a diversidade do continente, já que o país é o único de língua portuguesa situado na costa oriental da África. "Posso dizer como escritor. Moçambique é oriental em sua retórica, no seu jeito de ver o outro", diz o contador de histórias, com exemplos de uma retórica que beira o sarcasmo e a ironia contida no jeito do povo moçambicano.
"Em muitos lugares, inclusive no Brasil, há quem pensa que se sabe o que é uma coisa chamada África, como se fosse uma coisa fácil de se entender. Mas nós próprios, africanos, não a entendemos, pois há tantas, há uma diversidade".
Inclusive, o livro que está escrevendo neste momento é sobre sua cidade natal, Beira. "Lá faz parte de mim, é lá que eu estou nascendo ainda. A maneira que eu tenho de declarar esse amor a esse lugar é olhá-lo não como uma paisagem, mas como algo que está vivo, uma entidade, um personagem que quero trazer para a história, tem alma".