SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A trajetória da americana Elizabeth Holmes, que já foi motivo de livro, de inúmeras reportagens e até de um podcast, é contada por um novo documentário, que estreia nesta segunda (1º) na HBO.
Em 2003, aos 19 anos, ela abandonou o curso de engenharia química na Universidade Stanford, na Califórnia, para fundar a Theranos, empresa de medicina laboratorial que chegou a ser avaliada em US$ 9 bilhões (R$ 34 bilhões, pela cotação atual) em 2014.
A ideia era criar uma espécie de minilaboratório portátil capaz de realizar com algumas gotas de sangue --e precisão e a baixíssimo custo-- dezenas de exames, como testes de glicemia, colesterol, dosagem de hormônios, de toxinas, entre tantos outros. As rivais seriam gigantes dos testes diagnósticos dos EUA, a LabCorp e a Quest, que abocanham cerca de 80% do mercado.
Em "A Inventora: à procura de sangue no Vale do Silício", o diretor Alex Gibney (que levou um Oscar por "Enron: Os mais espertos da sala") reúne discursos e depoimentos de Holmes, com sua voz grave e olhos vidrados, e filmagens de seu dia a dia na empresa.
A obra conta com a participação daqueles que observaram e participaram da ascensão e queda de Holmes, como jornalistas --que a alçaram ao Olimpo do empreendedorismo-- e ex-funcionários, que resolveram em algum momento dizer o que sabiam. A produção é didática ao relatar uma história tão rica em detalhes.
A saga da Theranos ("therapy", terapia, e "diagnosis", diagnóstico) envolve boas doses de convencimento e ambição. Fizeram parte da diretoria da empresa Henry Kissinger e George Schultz, secretários de Estado dos EUA nas gestões Richard Nixon e Ronald Reagan, respectivamente, o general Jim Mattis, que foi secretário da Defesa de Trump e, antes disso, responsável por operações no Oriente Médio e na Ásia. Também há outras figuras recheadas de conexões dentro do governo americano e fora dele --mas com pouca experiência na área da companhia.
Nem o professor de engenharia Channing Robertson, que Holmes conheceu em Stanford, escapou do canto da sereia: ele entrou na Theranos logo no início, e emprestou sua credibilidade na busca por financiamento.
Diziam que ela tinha tudo para ser o próximo Steve Jobs e muita gente se convenceu disso --até a gola rolê era parecida. Holmes tinha admiração por Thomas Edison, famoso por algumas invenções (fonógrafo e lâmpada incandescente) e também por prometer mais do que podia cumprir.
O tal minilaboratório portátil recebeu o nome de Edison e, a exemplo de várias das invenções do homenageado, não funcionava bem: esquentava, explodia e bagunçava amostras. Miniaturizar a parafernália de exames de laboratório não era tão trivial.
Os exames muitas vezes tinham que ser refeitos (ou feitos) em dispositivos convencionais, o que exigia a dissolução das gotas de sangue colhidas ou a tradicional punção venosa, prática (teoricamente) abominada por Holmes. Ficou provado que os resultados do Edison eram falhos, com um número enorme de pareceres errados emitidos.
Durante a tentativa de aprovação pela FDA, agência americana com funções semelhantes à Anvisa no Brasil, a Theranos enfrentou muitas dificuldades e pouquíssimas vitórias. No processo, Ian Gibbons, que chegou a ocupar o posto de cientista-chefe da Theranos e que assinava algumas patentes, se suicidou.
Gibbons estava prestes a prestar um depoimento sobre uma das supostas invenções da Theranos. Ele teria confidenciado a sua mulher, Rochelle, que nada lá funcionava direito e que estava sendo pressionado a mentir.
Mesmo com esqueletos saindo do armário, Holmes e a Theranos fizeram de tudo para fazer parecer que tudo estava bem --como companhia de capital fechado, não havia tanto escrutínio externo.
Um grande acordo comercial com a rede de farmácias Walgreens foi fechado para a realização de exames no Arizona. A Theranos fez um lobby para que, no estado, não houvesse necessidade de pedido médico para os testes e uma lei com esse conteúdo foi aprovada. Até cartões de presente com "vale exames" foram distribuídos.
A farsa começa a chegar ao fim quando o John Carreyrou, do Wall Street Journal, recebe uma dica de um ex-funcionário da Theranos, Tyler Shultz, neto de George Schultz. Após ser identificado como fonte das informações, ele passou a ser processado e ameaçado pela empresa. Seu avô, até então era um defensor de Holmes, mudou de ideia após as reportagens de Carreyrou.
Em 2017, a Theranos já tinha encolhido de US$ 9 bilhões para cerca de US$ 50 milhões (R$ 190 milhões) em valor de mercado. O valor chegou a zero em 2018.
Não fica claro no fim das contas se Holmes realmente acreditava que em algum momento aquilo iria dar certo, mas é evidente que seu esforço atropelou fronteiras éticas.
Ela e Sunny Balwani, seu ex-namorado e ex-diretor da empresa, estão sendo processados, com risco de pagarem centenas de milhares de dólares em multas e ficarem presos por até 20 anos cada um.