Corra!, sucesso de bilheteria e queridinho da temporada de premiações, quase não foi realizado porque o diretor e roteirista Jordan Peele achou que ele não podia ser feito.
A ideia geral do roteiro – uma garota branca que leva o namorado negro para conhecer os pais – lembra Adivinhe Quem Vem Para Jantar, mas com uma diferença crucial e sinistra (atenção, spoiler): a suspeita do rapaz de que a família está lhe aprontando uma se torna cada vez mais assustadora e plenamente justificada.
Peele, 38 anos, conhecido por seu programa de humor subversivo com Keegan-Michael Key, diz nunca ter visto um filme como o que quis fazer, mas tinha medo de que temas como a vilania branca e a vitimização negra afastassem o público. Além disso, sendo birracial, se sentia desanimado com a falta de gente de cor no setor.
– Eu não tinha muitos exemplos em que me espelhar ou que me dissessem que um filme desses podia ser feito, mas na verdade, essa foi também a peça que faltava. Como negro, eu nunca tinha visto meus medos expostos na tela desse jeito – explicou Peele durante um bate-papo recente no Whitby Hotel, em Manhattan.
Por volta de 2014, cinco anos depois de começar a brincar com a ideia, ele começou a trabalhar em um roteiro e contou o que estava fazendo para o produtor Sean McKittrick (Donnie Darko), preparando o caminho, mas cheio de dedos. E se lembra de ter dito que era "seu filme favorito que nunca tinha sido feito", e provavelmente nunca seria, e até entendia o porquê. Para sua surpresa, entretanto, McKittrick topou se envolver com o projeto.
Três anos depois, em fevereiro de 2017, o filme estreou, coincidindo com a eleição de Donald Trump – que acabou com qualquer ilusão, alimentada na era Obama, de que os EUA eram um país que superara o racismo. O temor de Peele pela recepção do filme, entretanto, rapidamente se dissipou.
A princípio, ele temia que o retrato que fizera dos brancos estimulasse boicotes, mas, em vez disso, Corra! provou ser o remédio que o público nem sabia de que precisava, arrecadando US$254 milhões no mundo tudo, a partir do sonho que lhe custou US$4,5 milhões. (Ele acredita que talvez houvesse protestos se o filme tivesse tido como alvo os brancos conservadores, e não os liberais.)
Agora, para surpresa e puro prazer do autor, os bambambãs de Hollywood estão enchendo o filme de prêmios.
No Gotham Awards, Peele foi reconhecido como diretor revelação, além de faturar Melhor Roteiro e o Prêmio Popular. O National Board of Review o considerou o melhor filme entre os concorrentes à honraria e um dos melhores feitos em 2017; Peele levou como Melhor Estreia na Direção. Para o New York Film Critics Circle, foi o Melhor Filme de Estreia; a Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles premiou seu roteiro.
Ainda assim, o fato de o longa não ter ganhado em nenhuma das categorias principais deixou muitos fãs mais ardorosos insatisfeitos – como Julia Turner, editora-chefe da Slate, que teme que os votantes do Oscar não deem ao filme o que ele merece. Corra! é o melhor filme de 2017 e deve ser reconhecido como tal. Quando foi a última vez que uma obra-prima cinematográfica popular teve algo relevante e atual para dizer ao mundo?", escreve ela.
De qualquer maneira, esse tipo de atenção é incomum para um filme que facilmente poderia ser classificado como comédia ou terror, gêneros que já têm um histórico de fracasso com os augustos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
Claro que houve exceções, como Natalie Portman premiada como Melhor Atriz por Cisne Negro (2010), Kathy Bates na mesma categoria por Louca Obsessão, de 1990, e, mais prodigiosamente, O Silêncio dos Inocentes (1991), que faturou cinco estatuetas: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator, Melhor Atriz e Melhor Roteiro Adaptado.
No geral, porém, filmes assustadores que conseguem uma indicação ao Oscar tendem a ganhar nas categorias técnicas, como maquiagem e figurino – quando ganham. Embora ainda seja muito cedo, "Corra!" está cotado para disputar Melhor Filme, Melhor Roteiro e talvez Melhor Diretor e Melhor Edição. Além disso, a Academia está cada vez mais diversa, e indicações não só ao trabalho de Peele, mas a Mudbound - Lágrimas Sobre o Mississippi, entre outros, devem prevalecer, para evitar o constrangimento que acabou gerando o movimento #OscarsSoWhite.
A Universal Studios inscreveu Corra! na disputa como Melhor Comédia ou Musical do Globo de Ouro, para a qual depois foi confirmada, dando início a uma polêmica na internet, com muitos dizendo que a categoria minimiza a crítica do filme ao racismo. A coluna Carpetbagger ouviu argumentos que ratificam a decisão: "Engraçado" é a primeira palavra que aparece na sinopse do Rotten Tomatoes, e os reclamões de plantão confessam que talvez não tivessem levantado tanta lebre se o nome da categoria fosse "Melhor Sátira". Peele reagiu ao bafafá com um tuíte: "Corra! é um documentário", embora o tempo todo tenha se referido a ele como "suspense social", categoria que, segundo seu ponto de vista, inclui Mulheres Perfeitas e O Bebê de Rosemary, nos quais a sociedade e a humanidade como um todo são os monstros.
E já está em plena campanha por sua obra, dividindo a capa da edição especial da Vanity Fair, Extra!, sobre o Oscar, com Greta Gerwig (Lady Bird - A Hora de Voar), além de participar do Writer Roundtable do Hollywood Reporter.
O ritmo intenso da maratona parece ter deixado Peele meio confuso. (E o mantém afastado da mulher, a comediante Chelsea Peretti, e do filho pequeno.) "Que loucura. É o tipo de coisa que faz com que você se belisque para ter certeza de que não está sonhando", disse ele, ao receber um dos prêmios do Gotham.
É claro que ele também está achando todo esse furor extremamente gratificante porque o filme funcionou como uma espécie de catarse, espelho das inúmeras microagressões que sempre sofreu e dos medos que teve que enfrentar. "Entre eles, o de ser visto como 'alguém de raça tal' e não um ser humano; de abandonar minhas raízes e 'sair' da minha negritude para, vamos dizer, namorar alguém de raça diferente; de negligenciar minha própria identidade."
Peele foi criado em Manhattan, filho de mãe branca e pai negro que, segundo o ator, desapareceu de sua vida quando tinha sete anos. Desde muito cedo se mostrou quase obcecado pela questão racial, em grande parte porque ela constantemente se refletia em si próprio.
– A garotada não acreditava que minha mãe era branca –, relembra. Quando jovem, apesar de frequentar a prestigiada Calhoun School, se via sempre assediado pela polícia pelas razões mais insignificantes. Em exame ou formulários, sem saber a que raça pertencia, sempre escrevia "Outros".
– Sob vários aspectos você se sente familiarizado com os dois lados, mas tem também a questão de se sentir um peixe fora d'água tanto entre brancos como negros. É óbvio que a questão racial me é tão importante por causa das minhas próprias experiências.
Ele concentrou suas ansiedades e observações para os quadros satíricos e as paródias de "Key & Peele's", descobrindo o humor em temas sem a menor graça, como escravidão e violência policial. Em "Corra!", o alvo foi a hipocrisia do liberalismo branco complacente, encarnado pelo pai da moça, que declara que teria votado em Obama para um terceiro mandato quando, o tempo todo – atenção, spoiler! – fica tramando para tentar implantar no personagem de Daniel Kaluuya o cérebro de uma pessoa branca.
– Acho que todo mundo, até os brancos liberais, ou especialmente os brancos liberais, gosta de expor o lado sombrio do que achamos ser o tipo de branco mais politicamente correto –, declara. Outro motivo para o interesse do público, segundo imagina, é poder ver como é ser negro nos EUA.
– Não dá para chegar mais perto do que é ser negro do que assistir a um filme de negro com um protagonista negro.
Aconteça o que for em quatro de março, noite da entrega do Oscar, Peele pode se consolar com o fato de já ser vitorioso: Corra! estrou na sexta-feira antes da cerimônia deste ano – marcada pela baixa audiência e uma gafe homérica em relação ao resultado de Melhor Filme –, já entrando na corrida para se garantir como sucesso comercial.
Por Cara Buckley