Há uma personagem esquecida de grandes nomes de nossa literatura. São as pensões familiares.Até as décadas de 1940, 1950 e 1960, pessoas vindas do Interior, aposentados, pensionistas e profissionais de baixa renda não costumavam hospedar-se em hotéis ou alugar casas ou apartamentos em Porto Alegre. Optavam por passar temporadas ou morar em pensões familiares.
Na Rua Duque de Caxias, especialmente no trecho entre a esquina da Rua General Bento Martins (onde funcionavam, de um lado, o Armazém Pimenta e, de outro, o Bar Cristal) e a Rua General João Manoel, eram múltiplas essas vivendas, cantadas nas obras de um Erico Verissimo ou de um Cyro Martins, para ficar em apenas dois de nossos escritores.
Compreende-se seu interesse por esse tipo de moradia. É que ali se reuniam pessoas das mais diversas ocupações, que compartilhavam não apenas as refeições (e o banheiro, geralmente único), mas confidências, vivências, desejos. Não raro, surgiam ali histórias de amor, públicas ou envoltas em suave mistério e recato. Também não era raro que à noite houvesse cadeiras na calçada, numa época em que Porto Alegre não era sitiada pela bandidagem e as pessoas de bem não se viam obrigadas a viver atrás de grades e correntes.
Um pouco dessa diversidade pode ser vista neste trecho de Clarissa, o primeiro romance de Erico:
" – Bom dia, minha menina!
– Bom dia – responde Clarissa, sorrindo. É o velho Nico Pombo, major reformado, o hóspede mais antigo da pensão. Não tem o que fazer durante o dia, mas costuma madrugar para o chimarrão. No quarto do judeu, já há rumores. Uma voz grossa vem do banheiro: ‘Deixa esta mulher chorar / Pra pagar o que me fez’. É Nestor, sempre cantando, sempre alegre. Clarissa gosta de pessoas alegres. Nem todos na pensão têm cara alegre. O mais triste é Amaro: um ar de quem sofre, olhos que nunca estão olhando para parte nenhuma. E depois aquela mania de viver em cima do piano, batendo à toa nas teclas, inventando músicas que ninguém compreende... Enfim, como toda gente diz que ele é um homem muito inteligente, é melhor não discutir... Sorrindo, Clarissa entra no quarto."
Na parte citada da Rua Duque de Caxias, resta apenas um desses antigos estabelecimentos. Numa parede externa, está escrito, em letras com alguma vocação a góticas: Pensão Familiar.
Colaboração de Liberato Vieira da Cunha