Por Luís Francisco Wasilewski
Pesquisador teatral, pós-doutorando em Comunicação Social pela UFRJ
O documentário Divinas Divas, de Leandra Leal, preenche uma lacuna na historiografia teatral brasileira, da mesma maneira que Dzi Croquettes (2010), de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, fez sete anos atrás. Este último reconstituiu, de maneira preciosa, a trajetória do grupo de teatro-dança que revolucionou a cena teatral brasileira e mexeu com os padrões normativos da sexualidade.
Divinas Divas faz o mesmo contando a história das antecessoras do Dzi. Biografadas no filme, Divina Valéria, Eloína dos Leopardos, Camille K, Jane di Castro, Fujika de Holliday, Brigitte de Búzios, Marquesa e Rogéria (morta na última segunda-feira) foram as travestis pioneiras do país, incorporando uma estética teatral que se mantém rediviva.
Todas as citadas, e isso aparece bastante ao longo da narrativa, começaram sua carreira cultuando o Teatro de Revista. Eloína criou seu nome de batismo em homenagem à vedete de mesmo nome – por sinal, a única vedete gaúcha na história desse gênero teatral. Divina Valéria comenta, logo no começo do longa, que a primeira peruca que usou quando criança pertencia a Darlene Glória. Além de atriz icônica do cinema, Darlene teve uma participação rápida, porém marcante, como estrela do Teatro Rebolado, denominação que foi criada pelo jornalista Sérgio Porto, o famoso Stanislaw Ponte Preta.
Um dos espetáculos emblemáticos da década de 1960 foi Les Girls, também relembrado no documentário. Em cena estavam Divina Valéria, Rogéria, Brigitte de Búzios, Marquesa, Carmen, Manon, Carlos Gil e Nadia Kendall. A encenação de sucesso representou um sopro de vida no gênero Revista, que começava, naquele período, seu processo de decadência.
Cabe aqui comentar a marginalização da figura da travesti, outro aspecto retratado no filme. Quando Les Girls fez sua turnê pelo Rio Grande do Sul, nenhum teatro de Pelotas aceitou que o espetáculo se apresentasse em seus palcos. Elas tiveram que encená-lo em um clube da cidade.
O documentário de Leandra Leal não trata da discriminação que elas sofreram no meio teatral. Isso daria material para uma segunda parte, ou um segundo filme. Mas traz os pungentes relatos de Marquesa e Brigitte de Búzios falando das internações a que foram submetidas por suas famílias, com o intuito de serem "curadas" de sua orientação sexual.
Com o assustador avanço mundial do conservadorismo e com a não menos temível ditadura do politicamente correto em que vivemos, Divinas Divas traz para o grande público uma parte da vida cultural brasileira que ficou anos "dentro do armário historiográfico". Além de Rogéria, a obra conta também com o derradeiro depoimento de Marquesa (que morreu antes da finalização do filme) – duas artistas maiúsculas do teatro brasileiro.
E Porto Alegre coroou a trajetória do filme. Mesmo com uma distribuição modesta nos cinemas, o longa acabou de sair de cartaz na capital gaúcha depois de ficar nove semanas ininterruptas em exibição. Isso é uma façanha que serve de modelo a toda terra.
Para ver
Premiado no Festival do Rio e no SXSW, Divinas Divas (Brasil, 2016, 110min) permaneceu em cartaz por nove semanas em Porto Alegre, saindo dos cinemas no dia 1º. O longa pode ser visto na NET-Now, no Vivo Play e na Oi Locadora.