Por Alessandra Rech
Jornalista, pesquisadora CNPq, professora da Universidade de Caxias do Sul
Nunca acreditei em escrita puramente ficcional. Das minhas leituras escolhidas, posso dizer que provei nelas a carne de pessoas pouco escondidas atrás do papel. Essa comunhão essencialmente humana que busco não me leva a nenhuma verdade – até porque verdades não existem. Antes, a um desencontro permanente, a uma "vereda" de perguntas. Foi assim com Guimarães Rosa, com Clarice Lispector e com Hilda Hilst, ácida e intensa (a primeira resenha que escrevi sobre uma obra dela tem 20 anos e levava no título a expressão "limão com sal"). A tais ingredientes poderia acrescentar, no rótulo de algum livro, a cor das cerejas, a textura dos figos, apelos sensoriais de uma mulher que só se sabia apaixonada e que fazia da poesia matéria-prima para uma carpintaria redentora: "Das madeiras da casa/ Farei barcas côncavas/ E tingirei de negro/ Os lençóis de fogo/ Onde nos deitávamos".
De lá para cá, mergulhei no seu legado, principalmente na poesia. Minha tese, orientada pela professora Jane Tutikian, da UFRGS, tem o título Agudíssimas Horas – Imagens do Tempo na Poesia de Hilda Hilst, sem medo da hipérbole. Me ative à análise de versos indicativos da importância do tempo em sua obra: "Que canto há de cantar o que perdura?", pergunta-me a poeta. Não adentrei sua biografia, pois seria quase uma redundância. Aquele sujeito lírico nu, insano e enlevado abria a casa desde então. Só mais tarde eu veria, pendurado na sala dela, em Campinas (SP), um relógio com os dizeres: "É mais tarde do que supões". Sim, o tempo era agudíssimo para Hilda Hilst.
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Cinco anos depois de defender a tese, soube do programa Residência Criativa na Casa do Sol, onde Hilda Hilst viveu. Um lugar mítico para os amantes da literatura, a casa oferece hospedagem a pesquisadores e artistas ligados de alguma forma à obra da autora. A proposta é coerente com a trajetória de uma escritora que fez do seu retiro um espaço de troca de ideias.
As primeiras imagens que vi da casa datavam de pouco antes de sua morte, em 2004. Eram da visita do cantor Zeca Baleiro à propriedade, quando musicava as poesias de Ode Remota para Flauta e Oboé – De Ariana para Dionísio (o resultado é belíssimo). Na época, o acesso por estrada de chão indicava algum isolamento. Esse caminho já não existia quando meu táxi cruzou a guarita de um condomínio fechado. Mais tarde eu saberia que a antiga fazenda cafeeira herdada pela escritora foi sendo vendida em lotes porque, como ela mesma dizia, "escrever não dá grana".
Era uma tarde de domingo. Eu levava uma sacola de compras para minhas refeições nos próximos quatro dias. Fui recebida por Olga Bilenky, ainda sem saber o encantamento que essa amiga de Hilda Hilst me traria, tão generosamente disposta a contar as histórias do lugar. Ocupei um dos quartos da casa, quase monástico, com uma cama de solteiro, mesa de trabalho e uma janela para o verde exuberante. Silêncio mais do que oportuno para escrever, ou escutar os rumores do tempo.
Mais tarde me chamaram para jantar. Sentei-me à mesa ampla da cozinha de fazenda, onde tantas vezes a poeta bebeu seu vinho entre amigos. Ali estavam Narjara Medeiros, jovem escritora de Goiás, que cursa Enologia na fronteira gaúcha; Gabriela Greeb, diretora do filme Hilda Hilst Pede Contato, que finalizava mais um dia de filmagens; e o português Rui Poças, diretor de fotografia desse filme, que acabava de regressar do set de O Sentido da Vida, produção que evidencia a sensibilidade de Valter Hugo Mãe, um dos maiores nomes da literatura recente. Tínhamos um cardápio de assuntos! Logo, passávamos das apresentações ao riso, como quando alguém solicitou: "Me alcança o 'abissal'?" A palavra pomposa para o saleiro era uma referência poética. O riso geral atestava, mais que afinidades, um dialeto em comum.
A casa foi construída por Hilda Hilst em 1965. Inspirada pela leitura de Carta a el Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis (1883–1957), retirou-se da capital em 1966, aos 36 anos. A arquitetura foi pensada para essa interiorização: o elemento principal da construção é o átrio – todas as dependências estão voltadas para esse pátio central, no qual descansam sete ou oito cachorros (em vida, Hilda chegou a reunir mais de 60 cães de rua).
Espaço conventual criativo – assim se define a moradia, especialmente propícia à concentração. O jardim restante tem cerca de 10 mil metros quadrados e ostenta uma figueira centenária sobre a qual persiste uma mitologia ligada à realização de desejos. A área verde, parcialmente incendiada por um balão de gás que caiu na propriedade, carece de um projeto específico para retomar o paisagismo original.
Numa pausa dos trabalhos, a sala convida a descobrir na penumbra vestígios da vida da casa. Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, José Luís Mora Fuentes, entre outros rostos conhecidos, testemunham momentos nos retratos das paredes. "Isso não é um museu", eu poderia repetir para mim. Não há cúpulas de acrílico, alarmes, barreiras. Uma relação de confiança se estabelece na chegada: é preciso ter intimidade com a obra da escritora e um projeto para os dias de permanência. Tal proximidade parece definir o respeito por cada pedra, imagem ou objeto de arte que lotam os tampos das mesas e os aparadores.
A documentação e os livros de Hilda Hilst ficam em uma sala à parte, climatizada. Uma visita guiada permite folhear suas obras de referência, cerca de 3 mil exemplares (diz-se que ela lia oito horas por dia) e observar suas anotações. É um relevante material de pesquisa sobre um universo criativo ainda pouco estudado. No acervo, também há fotografias, desenhos, plantas da casa e documentos da escritora e de personagens fundamentais para a história do lugar.
A manutenção do projeto é uma conquista da artista plástica Olga Bilenky e seu filho, Daniel Fuentes, que hoje preside o Instituto Hilda Hilst. Namorada do escritor Mora Fuentes antes que ele e Hilda Hilst vivessem um romance, Olga voltou a se relacionar com Fuentes a partir de 1976. Nesse período, conheceu Hilda e passou a viver entre a residência de Campinas e um apartamento do casal em São Paulo. Assim estabeleceu fortes laços com ela.
Olga conta que faltou pouco para que o patrimônio de Hilda Hilst se perdesse: – O testamento da Hilda incluía herdeiros de sangue e a gente que vivia próxima a ela na casa. Um sobrinho dela chegou aqui com o agente imobiliário, convicto em derrubar a casa. Foi um momento em que eu me ergui e falei: "Não pode! Aqui ninguém entra". Nessa mesma semana fui até São Paulo conversar com a Lygia (Fagundes Telles), e ela me levou à Academia Brasileira de Letras. Lá, foi unânime o apoio ao tombamento.
O projeto Casa do Sol Viva abarca diversas iniciativas. A casa já recebeu cerca de 300 residentes. Outro destaque é o Teatro de Arena. Por meio de parcerias, são trazidos grupos para conhecer a casa e assistir a peças de teatro. Assim, a casa segue como lugar de provocação cultural, condizente com a trajetória de Hilda Hilst, que se destaca na prosa, na crônica, na dramaturgia, tanto quanto na poesia.
O recanto de um escritor desperta a curiosidade de muitos leitores. É como se o lugar pudesse fornecer pistas sobre o processo criativo, algo tão particular que dificilmente pode ser compartilhado. Aos leitores de Hilda Hilst, essa aproximação vai além do fetiche: "A minha Casa é guardiã do meu corpo/ E protetora de todas minhas ardências./ E transmuta em palavra/ Paixão e veemência".
Ao mesmo tempo cenário e personagem, a Casa do Sol pode ser tomada como símbolo do centramento da escritora. Revela a consciência sobre o próprio brilho e a afirmação de um projeto literário, o de estar entre os maiores, vivenciado com afinco e só realizado postumamente. Em vida, era preciso vinho e amigos para engolir a frustração de viver em um país de poucos leitores e "péssimos editores!", como desabafava. "E bebendo, Vida, recusamos o sólido/ O nodoso, a friez-armadilha/ De algum rosto sóbrio."