Lançado no último dia 12, o livro NósOutros Gaúchos reúne textos e transcrições de conferências da série de mesmo nome realizada em 2015. O volume, organizado pela UFRGS e pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), ecoa as reflexões do seminário, que há dois anos vislumbrou a identidade local entre a rica formação histórica e a estagnação atual. A seguir, ZH publica artigo do psicanalista Robson Freitas Pereira sobre o projeto.
Um livro é diferente de um site e mesmo da experiência presencial. É a oportunidade de ver ou rever temas que estruturam nossa vida. Ajuda a pensar e a entender muitas das mazelas cotidianas, pois as razões que motivaram o projeto que analisou diferentes aspectos da formação gaúcha continuam vivas. Às vezes como cicatriz, outras nem isso.
Sua concepção e execução foi trabalho conjunto entre o Departamento de Difusão Cultural da UFRGS e o Instituto APPOA – Associação Psicanalítica de Porto Alegre, contando com o apoio cultural da Celulose Rio-grandense.
A apresentação diz: "Nosso Estado não é pródigo na produção de consensos, mas poucos discordariam do fato de que nosso sintoma, como sempre acontece, se manifesta na forma como nos relacionamos entre nós, e com os 'estrangeiros', e que este traço cultural está na raiz das tensões que minam as relações de confiança, entravam as parcerias, produzem maniqueísmos belicosos e impedem nosso desenvolvimento em diversas áreas".
Ou seja, além da discordância, temos o "complexo de caranguejos no balde" – quando um ameaça sair, é puxado pelos outros e acaba caindo de volta. Sem falar no comportamento de torcida de futebol: por vezes, pior do que nosso time estar mal é constatar o sucesso do adversário. A expressão popular sobre a rivalidade fraterna exemplifica bem. Freud cunhou o conceito "narcisismo das pequenas diferenças" para definir o quanto traços mínimos podem se transformar em obstáculos intransponíveis e mesmo motivo de guerras fratricidas entre familiares, vizinhos, sócios e povos.
O mal-estar continua vigente e impossível de ser eliminado completamente. Já fomos à guerra civil por disputa de ideias e luta pelo poder. Do século 19 ao início do 20, nosso povo vivenciou embates cruentos. Não foi somente com a Guerra dos Farrapos, hoje mitificada.
Entretanto, na leitura constatamos que o Rio Grande já deu exemplos de transformar suas singularidades em qualidades: a implantação de uma educação diferenciada não foi exclusivo fruto do trabalhismo; remonta à chegada dos jesuítas (vide as palestras de Luiz Osvaldo Leite e José Miguel Wisnik). E, apesar de toda a história de confrontos, uma de nossas façanhas nos últimos anos é a alternância democrática no Poder Executivo e Legislativo na Capital e no Estado, sem uso de contorcionismos jurídico-políticos para chegar ao poder. Demonstrando, no dizer de Jaime Betts, um dos organizadores do livro, que os embates de hoje são um avanço civilizatório comparados às guerras fratricidas como a de 1893.
Porém, a dificuldade de conviver com a alteridade insiste. Uma possibilidade: confrontar medos e apostar num projeto de futuro no qual as agruras sejam enfrentadas e não só edulcoradas em algum mito ou rivalidades que escondam nossa fragilidade.
Donaldo Schüler interpretou nosso traço inicial: o Tratado de Tordesilhas, que dividiu o mundo entre Espanha e Portugal como corte e cicatriz. Outros palestrantes complementaram: na metade do século 19, começou a criação do mito do gaúcho. A ferida que nos deu origem revive simbolizada no mito, pois ele vem para suprir as carências que se tornavam incontornáveis.
Mito em duas vertentes: como narrativa fundamental e transcendente para constituição de uma cultura, ou como mistificação a serviço da manutenção do poder. Necessária para constituir uma identidade, mas que não pode se cristalizar, negando a diversidade das origens e a multiplicidade de relações. "Eu é um outro", somos rio-grandenses e, simultaneamente, brasileiros, latino-americanos e globalizados. Não há que rejeitar a singularidade, mas interrogar como lidar com o diferente.
Para inventar o gaúcho que queremos ser, convém lembrar um verso: "Quero aprender a não ser!" (Negrinho do Pastoreio, de Augusto Meyer). Uma narrativa totalizante mata a riqueza de nossas origens. Para que não se percam, sejam elas gloriosas ou dolorosas, precisam fazer parte de nossa memória. Resistir ao esquecimento é fundamental, para podermos inventar um projeto de futuro à altura dos desafios de nosso tempo.
NósOutros Gaúchos – As Identidades dos Gaúchos em Debate Interdisciplinar
Jaime Betts e Sinara Robin (organizadores)
Editora da UFRGS, 352 páginas.
O livro não está à venda em formato físico.
Informações sobre o e-book podem ser obtidas em ufrgs.br/difusaocultural/nosoutrosgauchos.