Em 1967, uma jovem estreante de 19 anos foi criticada como "vulgar e imoral" por alguns jornalistas por conta de Me Disseram, tema classificado no 2º Festival Internacional da Canção e que se iniciava com os seguintes versos:
"Já me disseram/ Que meu homem não me ama/ Me contaram que tem fama/ De fazer mulher chorar".
Escrever no feminino na primeira pessoa era coisa rara, mesmo entre as pouquíssimas compositoras que se destacaram na história da música brasileira – o estardalhaço, no entanto, surpreendeu a própria autora, que desejava tão-somente expressar-se no seu gênero, como vira antes em artistas como Billie Holiday e Edith Piaf.
Depois de editar mais de 40 discos e ter cerca de 400 gravações de composições suas feitas por alguns dos maiores intérpretes nacionais, Joyce pode se orgulhar de ter construído uma carreira sólida e amplamente celebrada, calcada em um cancioneiro caracterizado pela sensibilidade e pela inteligência melódica e poética, afirmando-se como uma vigorosa voz feminina na MPB.
Leia mais
Mário Barbará e Chico Saratt fazem show dos "Desgarrados" para lançar CD e DVD
Gaúcho da Fronteira completa 70 anos: conheça a trajetória do músico
Biografia ilumina a trajetória rica e complexa de Caetano Veloso
Aos 69 anos, Joyce Moreno – a cantora, compositora e violonista adotou o sobrenome de Tutty Moreno em 2001 após a união civil com o baterista, com quem já vivia havia 24 anos – acaba de lançar o ótimo disco Palavra e Som, reunindo 13 faixas de sua autoria. Três dessas canções são parcerias: Dia Lindo, com João Cavalcanti, Casa da Flor, com Paulo Cesar Pinheiro, e O Poeta Nasce Feito, contribuição póstuma com Torquato Neto (1944 – 1972).
– Eu e Torquato Neto fomos amigos até a morte dele, aos 28 anos. Até então, eu não fazia a menor ideia de que ele tivesse qualquer intenção de ser meu parceiro. Só muito recentemente, por meio do Marcus Fernando, que está dirigindo um documentário sobre Torquato, descobriu-se nos arquivos dele, lá em Teresina, uma lista de coisas que ele pretendia fazer. E dessa lista constava uma parceria comigo. Mas não havia indicação de letra ainda. Mais ou menos na mesma época, Ronaldo Bastos, maravilhoso letrista e nosso amigo em comum, publicou no Facebook uma carta-poema que Torquato tinha escrito para ele em 1969. Quando li, senti a música imediatamente dentro dessas palavras, e musiquei de cara. Foi assim que finalmente a parceria nasceu – contou Joyce em entrevista a Zero Hora.
Acompanhada por uma banda de base formada por Tutty Moreno, Helio Alves (piano) e Rodolfo Stroeter (baixo), a artista recebe no álbum convidados como Dori Caymmi, com quem divide os vocais em Dia Lindo.
– Dori é meu brother absoluto, somos amigos há séculos, ele foi meu primeiro arranjador, no primeiríssimo disco que gravei, aos 20 anos de idade. E até hoje, sempre que temos oportunidade, fazemos shows ou gravamos juntos. Ano passado mesmo fizemos uma temporada juntos no Birdland, em Nova York. Quando meu jovem parceiro João Cavalcanti fez essa linda letra, que fala da finitude da vida, achei que a voz do Dori, tão madura, seria perfeita para essa canção.
Palavra e Som tem samba (No Mistério do Samba e Sambando no Apocalipse), balada (Mar e Lua e O Amor É o Lobo do Amor), bossa nova (Humaitá), música instrumental com ginga de gafieira (Na 75) e moda sertaneja (Ave Maria Serena). O jazz, referência constante no trabalho de Joyce, é explicitamente homenageado na autoexplicativa Mingus, Miles & Coltrane. O gênero, porém, está presente em praticamente todas as faixas, graças aos arranjos que abrem espaço para solos e improvisos dos músicos, como explica Joyce:
– As coisas funcionam mais ou menos desse modo: o violão me sugere as harmonias e os grooves, eu apresento minhas ideias para o quarteto, e a partir daí vamos criando juntos.
Depois de flanar pelo disco com sua habitual desenvoltura musical, Joyce encerra o passeio com a música-título, dando uma receita, como em seu sucesso Feminina ("Ô mãe, me explica, me ensina, me diz, o que é feminina?") – em Palavra e Som, a recomendação da mestra é musical: "Deixa que a palavra faça a cama na varanda do som".
PALAVRA E SOM
De Joyce Moreno
Música popular, 13 faixas, Biscoito Fino, R$ 40, em média.
Cotação: excelente
ENTREVISTA
Como é seu processo de composição?
Em geral, meu processo de composição funciona exatamente conforme está descrito na canção que dá nome ao CD, Palavra e Som. Geralmente a música vem primeiro, porque é um canal que está sempre aberto e que nasce a partir do violão, meu maior parceiro. Sigo todas as sugestões que o violão me propõe, eu apenas obedeço. A partir daí, geralmente eu deixo o som descansar, enquanto vou trabalhando as palavras, a partir de certas sílabas e onomatopeias que a música me sugere. Daí, é contar uma história que faça sentido e que tenha coisas que eu esteja querendo dizer.
No disco, o amor manifesta-se sensual em Mar e Lua e devastador em O Amor É o Lobo do Amor. Comente sobre essas diferentes abordagens.
Mar e Lua é uma canção sobre o amor sensual e romântico, um amor bom, prazeroso, feliz. Já O Amor É o Lobo do Amor faz parte da trilha que compus para um curta-metragem da diretora espanhola Ana Martinez. É um filme que fala sobre violência doméstica, um tema que me interessa muito, pelo ponto de vista das mulheres que passam por isso. Quem são essas mulheres? Por que elas continuam com seus homens, apesar dos relacionamentos abusivos? Pelo que a maioria diz, é sempre em nome do amor e da crença de que o outro irá mudar. São as "masmorras do amor" de que a letra fala, e das quais às vezes é difícil a pessoa se libertar.
As questões femininas e o próprio feminismo são temas recorrentes nas suas letras, presentes nesse novo trabalho particularmente em Forrobodó das Meninas. Como você vê a presença da mulher na MPB de hoje?
Sou uma feminista old school, da segunda metade do século passado. Aos 18 anos, minhas primeiras composições já eram no feminino singular, falando sobre o amor com bastante liberdade, e assim fui indo até hoje. No meu começo de carreira havia um certo estranhamento em relação a isso. Mulher compositora (e instrumentista, arranjadora, bandleader etc.) já era um bicho raro. Compondo no feminino, pior ainda. Por isso mesmo fico muito feliz hoje quando vejo a grande quantidade de mulheres compositoras, e principalmente instrumentistas, donas do seu próprio som e de suas próprias ideias. Hoje há muitas, são mulheres bacanas, jovens e criativas. Veja o canal de YouTube Meninas do Brasil: elas estão ali, brilhando e criando. De cara, me vêm nomes como Luiza Sales, Joana Queiroz, Antonia Adnet, Anna Paes... Vejo essas meninas e me dá um orgulho danado, uma sensação de que sim, valeu a pena. E, claro, pessoal, o feminismo não é nada de mais: apenas a busca por uma igualdade de direitos. Já estamos na segunda década do século 21, não é possível que ainda haja tanto pensamento retrógrado em relação a isso!