Uma das imagens que guardo de meu avô materno, desta perspectiva à meia-altura das memórias da infância, é a dele sentado junto à porta da casa da praia, em sua poltrona de vime, guarnecida por duas almofadas amarelas. Por mais que eu acordasse cedo, ele já estava ali mateando, hábito que trazia de longe, meu bisavô fora uma espécie de terra-tenente ao norte do estado. Eu ficava em silêncio, estendido num sofá feito de colchões, o que permitia a meu avô que mergulhasse ainda mais naquele mundo desconhecido a quem não sabe então o que é ter passado. Sempre que percebia que eu o olhava há algum tempo, costumava dizer, é, Pedruca, são as coisas do governo. Eu achava aquilo engraçado. Nunca soube, ao menos não naquele antigamente, quais eram as tais coisas do governo. O sentido figurado, quando passamos a reconhecê-lo? Agora mesmo me pergunto, diante do que temos de aguentar, se tal expressão não seria uma forma de fatalismo à brasileira, o destino uma conjuração armada contra nós por quem deveria nos proteger.
Depois da casa acordar, meu avô se erguia para fazer a barba. Ele adorava um barbeador elétrico da Philips, enxergava tantas virtudes no apetrecho que era como se fosse uma espécie de símbolo da transição tecnológica, um divisor de águas entre dois Brasis, o rural e o urbano. Passada minha adolescência, ele me presenteou com um igual, que pouco usei porque me irritava a pele, mas que guardei durante anos, crente de que um dia meu rosto ganharia aquele aspecto áspero das gentes da fronteira. Um dia o aparelho estragou, meu avô não estava mais aqui, o que o salvou da frustração de saber que o neto precisa de bálsamos importados para se afeitar.
Revigorado, ele voltava à poltrona, trazendo alguns números da revista Ícaro, uma publicação bilíngue que usava para aprender inglês. Passava horas catando palavras no dicionário. Não sei se desconfiava dos tradutores, cacoete do promotor que nunca fora capaz de aposentar. Não sei se tomamos os traços de quem amamos, pois aí estaria uma explicação para muito coisa, mas as frases, por certo que sim.
Hoje, antes de pôr na página a primeira palavra, os olhos perdidos para além da janela repassando tantos ontens, voltei quando meus lábios me disseram, são as coisas do governo.