Difícil descrever a sensação de escutar ao vivo a voz de Dave Gahan quando ele começa a cantar. O impacto é instantâneo e parece trazer memórias de uma vida toda. Poucas bandas definiram tanto o som de uma época (ou épocas, mais exatamente) como eles. Portanto, não é exagero afirmar: ver o Depeche Mode tocar é ver a história.
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Os mais de cem milhões de discos vendidos que o trio inglês acumula em 36 anos de carreira dão uma ideia do tamanho do fenômeno comercial que ele representa. Mas não dá a medida exata da presença e da influência de seus hits na cultura pop das últimas décadas. Mas até os que não gostam da banda são capazes de reconhecer e quiçá cantarolar músicas como Strangelove, estrondoso sucesso de 1987, ou a não menos clássica Enjoy the Silence, de 1990, ambas compostas pelo tecladista, vocalista e guitarrista Martin Gore.
O Depeche Mode ditou como poucos os rumos da música eletrônica na fronteira entre o pop e o rock nas décadas de 1980 e 90. O ápice de seu protagonismo parece estar na sequência dos discos Music For The Masses (1987), Violator (1990) e Songs of Faith and Devotion (1993). Se desde então o grupo não atingiu o mesmo grau de influência, sua carreira continuou sólida, arrastando multidões a shows e lançando um disco a cada três ou quatro anos.
– Nós realmente não imaginávamos que iríamos chegar tão longe – diz Andy Fletcher, tecladista e membro fundador da banda, na tarde de sábado, 18, dia seguinte ao show de lançamento do disco novo.
Cada um dos membros da banda dá entrevistas separadas a jornalistas de diversos países em salas do luxuoso hotel Waldorf Astoria. Foi o dia todo assim, e Fletcher está cansado, de costas para a janela que dá para a estação Zoologischer Garten.
– Estamos bem animados. É sempre bom sair em turnê com um disco novo.
Spirit, o décimo quarto álbum de estúdio do trio, tem doze faixas e foi produzido por James Ford, da dupla Simian Mobile Disco. É um disco mais soturno, carregado na eletrônica, e que vem com um forte discurso de questionamentos.
– Nós raramente somos assim tão políticos – avalia Fletcher: – Faz algum tempo que as coisas estão bagunçadas, agora com Brexit, Trump. Martin sentiu que era a hora de tratar dessas coisas mais claramente.
A escolha do primeiro single, a faixa Where's the Revolution, deixa clara a postura da banda.
A Global Spirit Tour começa em Estocolmo no dia 5 de maio e varre a Europa e as Américas com muitos dos shows já esgotados, quase todos em estádios para dezenas de milhares de pessoas. A boa notícia é que os (muitos) fãs brasileiros vão poder ver a banda de perto novamente, após 24 anos de espera. E que espera sofrida: em 2009 o grupo cancelou os shows que faria no Rio de Janeiro e em São Paulo; em 2014 houve muita especulação acerca de uma participação no Lollapalooza, que não se confirmou. O Depeche Mode vem ao Brasil em 2018, e as informações sobre a vinda devem ser divulgadas nos próximos dias.
Fletcher nada pode falar sobre os dois shows que a banda fez no antigo Olympia, em São Paulo, em abril de 1994: ele havia deixado a turnê e voltado para casa pouco antes, por conta de uma crise nervosa. Mas ele revela ter boas expectativas:
– Eu sei que temos muitos fãs no Brasil, e o público sul-americano em geral é sensacional. E eu não estou falando só por falar!
Em dado momento, seu celular apita. "Yes!", exclama, para logo depois se desculpar por interromper a entrevista:
– É que meu time está jogando.
Gary Cahill acaba de desempatar com um gol que pouco depois daria a vitória ao Chelsea sobre o Stoke City. Minutos antes, Fletcher falava sobre como gosta do fato de, apesar do sucesso, poder ter uma vida relativamente normal.
– A privacidade é algo muito importante, senão nada disso teria sentido. E temos sorte, nossos fãs em geral são muito respeitosos.
O gol lhe traz alívio, seu humor melhora. É de fato um homem normal, à mercê do sucesso do goleiro de seu time como qualquer um de nós.
Dentre as razões da longevidade da banda, a capacidade de renovar sua base de fãs é talvez a mais importantes.
– É algo muito bom ver como normalmente as primeiras fileiras dos nossos shows estão tomadas por jovens.
No lançamento de Spirit, na última sexta-feira, 17, muitos dos que cantavam de cor canções como Personal Jesus e Walking In My Shoes sequer haviam nascido quando o Depeche Mode estourou com Just Can't Get Enough, em 1981.
– O que é curioso nisso é que nós jamais fizemos alguma coisa na intenção de conseguir isso. É algo incrível, sem dúvida uma das razões de ainda estarmos vivos, mas eu não sei por que acontece.
As razões parecem ser muitas: o casamento entre a eletrônica e o rock, os vocais e a presença de palco de Gahan, a entrega nos shows, a capacidade de se reinventar dentro de um estilo próprio, a poesia estranha das letras e o faro fatal de Gore para hits são algumas das marcas mais evidentes nesses quase quarenta anos de carreira. Os mais românticos que se preparem: o retorno ao Brasil promete grandes doses de nostalgia.