O teórico britânico da literatura Terry Eagleton considera a cultura "uma das duas ou três palavras mais complexas" da língua inglesa. A afirmação está no livro A Ideia de Cultura e provavelmente pode ser aplicada ao contexto brasileiro, especialmente neste momento de turbulência política nas ruas e nas redes sociais.
Desconhecendo ou minimizando a importância das manifestações criativas, um setor particularmente conservador da classe política e da sociedade tem criticado trabalhadores do setor e manifestado aversão ao investimento público na área, que estaria, segundo este ponto de vista, drenando recursos de setores prioritários como saúde e educação.
Um mergulho nos números mostra outra realidade: o financiamento público para a cultura já é considerado abaixo das expectativas. Como apontou reportagem sobre a Lei Rouanet publicada no caderno DOC de Zero Hora no último fim de semana, a isenção fiscal do governo federal para projetos culturais em 2016 representará apenas 0,66% do total de gastos tributários para todos os setores da economia. Para efeito de comparação, as isenções para desporto e lazer somarão 1,25%.
Como analisar, portanto, a resistência à cultura que se insinua? Uma hipótese é que a arte tem especial capacidade de ativar o senso crítico de seus apreciadores, oferecendo alternativas ao status quo – por isso, seria vista por figuras do poder como perigosa. Naquela que é considerada a maior obra da dramaturgia de todos os tempos, Hamlet expõe o crime de seu tio Cláudio – que matou seu pai e depois se casou com sua mãe – ao criar uma encenação teatral de como tudo ocorreu. A reação assustada de Cláudio ao assistir ao espetáculo é a prova de culpa.
– Por provocar reflexão, a arte pode desacomodar – afirma Francisco Marshall, historiador, arqueólogo e professor da UFRGS, que cita Sófocles, Shakespeare e Coppola como alguns dos nomes que criaram obras questionadoras. – Essa inteligência desagrada aos que lucram com a ignorância, como esses pastores pentecostais, políticos safados e exploradores em geral, hostis à inteligência emancipada. Daí se compreende seu combate à arte e à cultura.
Há, também, a hipótese de que uma espécie de ódio à cultura esteja sendo gestada por representantes do estamento político e outras figuras de influência pública com vistas a um ganho eleitoral a partir de preconceitos subjacentes em parte da sociedade. A filósofa e escritora Marcia Tiburi analisa:
– Além de tudo, xingar é um procedimento de humilhação que produz um imediato lucro subjetivo. Diria que, no Brasil, produz votos. As pessoas votam em quem xinga conforme sua necessidade. Muitos dos que foram eleitos não dizem nada de relevante, mas ganham votos na gritaria e no xingamento e na exposição burra e preconceituosa com a qual muita gente se compraz porque é só o que lhes restou.
Ataques à arte têm histórico autoritário
Não é por acaso que a arte expressionista foi vista como uma ameaça por Hitler, que advogava um ideal estético em consonância com a barbárie que propunha no plano social. Como acrescenta o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, a cooptação da arte a serviço de um projeto político autoritário ocorreu também no período stalinista, cuja produção, em suas palavras, "era um pavor, em termos estéticos e conceituais":
– Mas um fato é certo: nenhum governo totalitário conseguiu abafar, de modo permanente, a expressão artística. Ela permaneceu enclausurada, mas viva. Podemos pensar como exemplo os catalães Pablo Picasso e Pablo Casals, que tiveram de sair de seu país por conta de um regime adverso. E suas manifestações artísticas permanecem até hoje.
Para Marshall, os ataques à cultura atualmente em curso têm raízes mais próximas, remetendo ao período do regime militar:
– Embora o caso nazista seja o mais brutal da história da humanidade e seja, portanto, referência e mesmo uma possibilidade histórica latente, creio que no Brasil temos agora um revival da hostilidade a artistas e intelectuais gerada e cevada na época da ditadura. Quem discorda do governo é tido como esquerdista e quem não tem cultura associa o poder do Estado ao vigor paterno e à restauração da ordem. Logo, atacar artistas faz parte de uma pulsão inconsciente e reacionária de retorno à ordem, ilusória, improdutiva e violadora.
Agora: como sintetizar a importância das manifestações criativas em uma sociedade para além de seus efeitos materiais e econômicos? Marshall observa:
– A arte elabora símbolos, atualiza a memória cultural e produz representações elaboradas do mundo e da condição humana. Muitas vezes, a arte examina situações difíceis e produz espelhos que nos ajudam a compreender os verdadeiros problemas e nos posicionar diante deles com maior inteligência. Outras vezes, oferece um cenário de liberdade e imaginação em que nos alimentamos para os demais esforços da vida, sobretudo os processos criativos e educacionais.
Embora arte e cultura às vezes se confundam, há distinções importantes, como explica Marcia:
– Cultura é o que experimentamos. Cultura é justamente aquilo que é naturalizado, que não parece cultura. A arte é a parte da cultura que expõe a consciência da cultura. Vou usar uma analogia: se gênero é um assunto naturalizado, feminismo é a consciência dessa naturalização.
Na opinião da atriz e diretora teatral Deborah Finocchiaro, é preciso reforçar o poder transformador da arte. Segundo ela, determinados embates entre segmentos polarizados da sociedade podem servir como cortina de fumaça enquanto desmandos ocorrem nas esferas superiores de poder. Assim, segundo ela, é preciso unir forças, apesar das diferenças. Nesse sentido, a arte deve ser vista como uma aliada:
– O que devemos defender? Já não acho que seja a esquerda ou a direita. Temos que buscar o caminho da esperança para o ser humano, da dignidade para todos. Temos que nos entender apesar das diferenças e não ficar desqualificando ninguém. Pela arte, conseguimos obter novas perspectivas, pensar de outras formas.
Especial – A Cultura no Governo
Segunda (30/5): O Poder da Cultura
Quarta (1º/6): O Valor da Cultura
Sexta (3/6): A Imagem da Cultura