Aos 47 anos, quase 30 dedicados aos Racionais MC's, o cantor Paulo Eduardo Salvador, o Ice Blue, nunca produziu tanto. Ao lado de Mano Brown, Edi Rock e KL Jay, prepara o lançamento de um álbum para o final deste ano, enquanto trabalha a carreira solo em parceira com outros artistas e faz shows Brasil afora. Um dos ícones do rap nacional, Ice Blue subiu com os colegas paulistas ao palco do All Need Master Hall na madrugada de sábado, em Caxias, para mostrar pela primeira vez na cidade o último disco da banda, Cores & Valores, lançado em 2014.
O show, pesado e envolvente, trouxe clássicos dos Racionais mesclados à batida contemporânea do trabalho mais recente. Em uma entrevista por telefone antes da vinda à cidade, Blue revelou que diversas músicas do grupo estão sendo trabalhadas em estúdio e que os fãs terão novidades em breve. Militante da causa negra, o rapper não fugiu de polêmicas que envolvem sua trajetória de vida e arte.
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Em cerca de 30 minutos de conversa, afirmou que a banda evoluiu junto com a periferia, que a realidade dos jovens de 2016 é diferente dos da década de 1990 e que os negros ainda não acordaram para realmente lutar pelo fim do racismo no país. Ice Blue também classificou a política brasileira como “atrasada e burra” e lamentou que o povo esteja sendo manipulado. Antigo apoiador do Partido dos Trabalhadores, garante que, após o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, nasceu outra ideologia nos Racionais.
Quando se aposentar, o rapper paulista quer morar no Sul do país. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Pioneiro: O álbum 'Cores & Valores' recebeu críticas de que fugiu às raízes do grupo. Tem gente falando que Racionais virou uma banda comercial, se vendeu para o sistema. É isso mesmo?
O álbum tem 32 minutos e eu costumo dar risada. Lançamos o disco, ninguém entendeu o conceito, aí o Dr. Dre (rapper americano) fez um de 31 minutos e ganhou prêmio depois dos Racionais! E aí, o que vocês têm a me dizer? A mentalidade tem de mudar. Hoje você faz a música, aperta um botão e milhões de pessoas estão ouvindo. Racionais é uma banda de praticamente 30 anos. A cada cinco anos, há uma mudança de geração. Mudam costumes, dialetos, roupas. Nós tínhamos 18 anos, hoje somos homens de 40. A nossa periferia não é a mesma de 1994, a nossa cadeia não é a mesma de 1997, a nossa favela não é a mesma também. Aí, as pessoas querem colocar esse ponto de vista de que se tornou comercial e deixou de falar as coisas. Estão completamente bitoladas e não analisaram os assuntos das músicas. A gente trata das mesmas coisas, de outra forma. Racionais é de uma época que não existia YouTube, Facebook, não havia meios de comunicação democratizados como essas redes que hoje funcionam a nosso favor. Existia um monopólio de gravadoras e distribuidoras. Se você quisesse ser um artista, estava nas mãos de algumas pessoas. Agora, não mais. É uma mudança muito radical para acharem que temos de estar estacionados. Porque essas mesmas pessoas que hoje falam que o Racionais mudou estão brigando para ter os carros delas, as coisas delas.
Podemos esperar um novo álbum em breve? Ou Racionais vai continuar com esse espaço largo para novos trabalhos?
A gente faz mais música agora, estamos num momento de muita produção. Temos uma pá de músicas em execução no estúdio para lançar mais um disco. Estamos programados para o final do ano. Se não der, vamos trabalhar para ser no começo do ano que vem.
Entrando um pouco na política, como vocês se sentem após o impeachment da presidente afastada Dilma, sendo que já apoiaram o PT publicamente em outras ocasiões?
Para ter uma evolução política no Brasil, teria que acontecer tudo isso que está acontecendo. Se não, não iria para frente. Porque a nossa política é totalmente atrasada, bitolada e burra. Os caras têm um motorzão e estão querendo andar de bicicleta. É difícil. Nós apoiamos e defendemos o Lula, o PT, mas chegou um momento que ninguém escapou, todos se envolveram. No show, mostramos a decepção que é. O povo é manipulado e assiste de camarote às coisas acontecerem. Não move uma palha. Após o impeachment de Dilma, começou um novo momento, uma nova ideologia dos Racionais MC's. É uma outra visão de periferia. Todo mundo simplesmente vai com a onda, ninguém se preocupa com nada, essa é nossa visão.
Mas essa periferia é melhor ou pior se comparada à época do surgimento dos Racionais?
Melhor. Hoje a periferia está motorizada. Todo mundo tem uma motinho para andar, carro, TV a cabo, sinal de internet, celular. Está todo mundo na rede sabendo o que está acontecendo no mundo. Antes, era isolado. A periferia hoje tem voz, basta ter interesse.
Um dos principais assuntos tratados pelo Racionais nas músicas é o racismo. Você acredita que o Brasil se libertará dessa sina?
Ainda estamos muito atrasados nessa questão de negro e branco. Até pelos próprios pretos, que precisam acordar. Não reivindicamos nada. Nossas passeatas não juntam ninguém, nós só pagamos de maior número de população, mas na prática não mostramos isso. Há muita coisa para acontecer, tanto da parte dos pretos quanto da parte da sociedade com a gente.
Uma mudança de postura dos negros?
Exatamente. Somos de uma época onde observamos jogadores de futebol importantes falando "ah meu cabelo é ruim", "ah eu sou escurinho", "ah eu sou pá pá pá", quando eles representavam moleques de periferia do mundo todo. Você espera o que dum cara que é seu ídolo? Que tente evitar que é negro? Quando eles foram para a Europa, sentiram na pele que realmente são negros. Lá, não passam como brancos. Não são moreninhos, mulatinhos, que nada. São negros, já era.
Como você lida com a fama? Mesmo famoso, ainda é vítima de racismo?
Muito mais ainda. Você começa a frequentar ambientes praticamente racistas, hostis, mas isso vai muito da sua personalidade, porque o seu dinheiro tem a mesma cor do dinheiro das outras pessoas. Essa é a ideologia que eu uso. Eu tô aqui, meu dinheiro tem a mesma cor do seu e vou pagar a minha conta. A fama não me incomoda. É só saber que da porta para fora você tem um personagem que representa, que as pessoas olham. Você deixou de ser o Zé tal das quantas Pereira da Silva e hoje você representa fulano de tal. A fama é um fardo que o cara tem que carregar e usar com inteligência, porque é uma faca de dois gumes. Te dá tudo, mas te tira tudo também. Não pode vacilar.
Quem vocês ajudam?
A gente faz isso desde o começo e nem divulga, porque somos envolvidos mesmo. Nem gostamos de falar. É espontâneo, não por obrigação, achar que isso ou aquilo. Não é nada para agradar.
Nos shows, qual a música que você mais gosta de cantar?
Estamos fazendo tantas outras músicas, mas eu gosto de Tô ouvindo alguém me chamar. Marcou uma época. Foi muito difícil de ser executada e mixada. Deu um puta resultado. Você ouve a música e está dentro de um filme. Então, eu tenho um xodó especial por ela.
Os Racionais estão chegando aos 50 anos, quase 30 de grupo. A relação entre vocês ainda é boa? Como é essa convivência?
Permanecemos juntos porque, antes de qualquer coisa, somos amigos. Temos uma liberdade dentro da banda, falamos o que tem de ser falado. Gostando ou não, vamos expor as ideias para todo mundo ali, na hora. Isso deu certo, cada um no grupo sabe se respeitar, sabe o limite do outro. O Mano Brown é meu primo, meu compadre. O Edi Rock é praticamente irmão do KL Jay. Isso fortalece. Somos amigos mesmo. Porque, se não fôssemos, não teria como manter uma banda por 30 anos. O estresse que é, a responsabilidade que carregamos, não teria como segurar sem amizade.
Como vai ser o Ice Blue aposentado?
Ah mano, vou mudar para Floripa. É o lugar que eu escolhi no Brasil para sair fora. Vou me aposentar lá. Vou fazer uma pousada e ficar por lá, esse é meu projeto de vida.