Três tempos (2005) é o título do magnífico filme no qual Hou Hsiao-hsien abordou os relacionamentos através das décadas. Outro mestre chinês, Jia Zhang-ke também dividiu seu novo longa em três atos, cada um situado em um período diferente. Mas As montanhas se separam, estreia desta semana nos cinemas (em Porto Alegre, no Guion Center), aborda o amor apenas como pretexto para falar da materialização das relações humanas como um todo. E, como se trata de Zhang-ke (O mundo, Em busca da vida, Um toque de pecado), de perda da identidade nesse contexto.
As montanhas se separam começa em 1999, quando o espectador é apresentado a um triângulo formado por um mineiro humilde (Jing Dong Liang), um novo rico arrogante (Yi Zhang) e a mulher que ambos amam (Tao Zhao). O tom de melodrama é sublinhado pelo diretor, que com uma direção estranhamente – mas intencionalmente – pouco sutil reforça a ideia de inocência por trás daquele jogo amoroso. Zhang-ke só está preparando terreno para os dois terços seguintes do filme, que se passam, respectivamente, em 2014 e 2025.
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Seduzida por quem no fim do século passado representava o "novo", anos depois a mulher está em choque com o "velho": ela é confrontada com a situação de desespero vivida pelo mineiro, que ao ser preterido deixou para trás a pequena cidade em que viviam. E é orgulhoso a ponto de não aceitar ajuda financeira. Sua negação ao dinheiro, na verdade, escancara as intenções de Zhang-ke – é o apelo dos bens materiais e a sua consequente dependência que o interessam.
Em seu ato final, As montanhas se separam gira em torno de Dollar (Zijian Dong), o filho da protagonista que seguiu a letra da música dos Pet Shop Boys que aparece em destaque na trilha sonora (Go west) e foi viver no Ocidente. Prestou atenção ao nome do garoto? Há muito mais a evidenciar a obsessão material e, por consequência, uma certa descivilização em seu entorno. Tudo está ligado à perda daquela inocência inicial.
No fundo, essa crônica do corrompimento é o retrato da própria China contemporânea aos olhos de Zhang-ke, desde sempre um cineasta interessado na representação das culturas mais genuínas – e na influência que estas recebem na era da globalização. O que torna As montanhas se separam um filme gigante é não apenas sua capacidade de se comunicar com todos os tipos de público, de todas as origens, mas também a abordagem da questão de maneira tão segura e complexa que parece fazer sentido em qualquer lugar do mundo.
A melancolia é universal. A crise é da aldeia globlal, está dizendo Zhang-ke. É bom prestar atenção: trata-se de um dos maiores artistas do nosso tempo.
AS MONTANHAS SE SEPARAM
(Shan he gu ren)
De Jia Zhang-ke.
Drama, China/Japão/França, 2015, 126min.
Em cartaz em Porto Alegre, no Guion Center.
Cotação: ótimo.