Era madrugada quando cheguei em casa, ainda morava com minha mãe. Sentei à mesa da cozinha, o corpo vagamente preso ao recente encontro amoroso, mais bem estaria na cama a recordar os deleites daquela noite. Mas ali estava eu, à mesa, com um súbito desconforto que a memória teria apagado – que de presságio eu não poderia chamar –, não fosse o telefone que logo tocou.
Durante muitos anos relutei em escrever sobre isso. Em alguns poemas apenas toquei no assunto. Naquela ligação que minha mãe atendeu, congestionada pelo sono, avisavam que meu primo havia se acidentado. Corremos à casa de meus tios, moravam perto de nós, a tempo de vê-los chegar com a notícia. Não precisaram dizer nada. Diriam e fariam muito ao longo dos anos seguintes, conscientizando e salvando jovens com a Fundação Thiago de Morais Gonzaga e a Vida Urgente. Lá, pouco depois, incapaz de lidar com a cena, percorri sozinho o caminho de volta para casa. Eu tinha então dezenove, meu primo mal completara dezoito.
Relutei em escrever sobre isso porque me lembro também da dor do meu irmão, da dor de minha avó Domenica, tão maiores, e há uma cortesia tácita que agora descumpro, que reza que a dor menor se cala.
Mas percebo que tentar falar desta dor é de algum modo falsificá-la, distorcê-la, qualquer coisa diferente do que guardo dela. Porque nossas memórias têm a potência de registrar com peculiar intensidade tudo o que sentimos diante do choque, num lugar em que não há comparações, nós, os únicos espectadores de um filme cuja nitidez sequer a realidade pode alcançar. As cores são mais vívidas, podemos nos deslocar pelo cenário como um cinegrafista que captasse a cena de vários ângulos. Vejo todos os rostos no enterro, todos os gestos, o azul do céu que brilhava metalicamente. E, ao redor disso, a outra descoberta que a grande dor nos traz: ela, como um planeta denso, atrai satélites para sua órbita, feitos de imagens da pessoa viva, meu primo sempre jovem enquanto eu envelheço, antes meu contemporâneo, já meu irmão caçula, hoje quase meu filho.
Se há consolo, me parece, ao menos neste mundo, é esta imortalidade dos outros precisamente dentro de nós. Assim, a mesma dor que grava é a mesma dor mitigada ao assistirmos à gravação.