O artigo 215 da Constituição Federal é claro: "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais". A cultura, assim como a educação e a saúde, é um direito do cidadão. Nas últimas semanas, a forma como ela é gerida nacionalmente vem sendo discutida entre governo, classe artística e população.
O presidente interino, Michel Temer, chegou a anunciar a extinção do Ministério da Cultura (MinC), que se tornaria uma secretaria vinculada ao Ministério da Educação (MEC), sob o comando de Mendonça Filho – líder do Democratas na Câmara e um dos articuladores do impeachment, que tem, no currículo, trabalhos como secretário de Agricultura e vice-governador de Pernambuco, além de deputado federal. Depois de forte embate de profissionais da área, Temer voltou atrás e manteve o ministério, nomeando Marcelo Calero para liderança da pasta. Mas o que esse status significa?
Os ministros são subordinados ao presidente da República e possuem autonomia técnica, financeira e administrativa para executar ações em suas áreas de competência. Sendo assim, como ministro, Marcelo Calero, que tem experiência em cultura, dialoga diretamente com a presidência. Como secretário, teria de responder a Mendonça Filho.
Secretário municipal da Cultura de Porto Alegre, Roque Jacoby acredita que a existência de um ministério foi uma conquista: garante maior autonomia para que políticas culturais sejam idealizadas e executadas. Já Vitor Ortiz, ex-secretário-executivo do MinC e gestor de projetos como o festival Virada Sustentável, considera que a mudança para secretaria traria, como ônus, a ausência de um representante exclusivo da cultura nas rodadas da Secretaria de Orçamento Federal, onde se debate a parcela de investimento que será destinada a cada setor.
– Ninguém discute que áreas como educação, saúde e segurança sejam prioridade. Já está estabelecido isso, e a cultura não atrapalha em nada esse princípio, porque os orçamentos são muito maiores para elas – afirma Ortiz, lembrando que a cultura tem ficado com apenas 0,1% do orçamento da União. – Excluir a cultura ou considerá-la de quinta categoria é que é grave.
Fernando Schuler, ex-diretor da Fundação Iberê Camargo e atual curador do Fronteiras do Pensamento, lembra que existem países de formação cultural extremamente forte que não possuem um Ministério da Cultura, como Estados Unidos e Alemanha, mas também entende que o status de ministro tem as suas vantagens.
– Boa parte do poder de um governante advém da simbologia. A força de representação internacional e de negociação no Congresso ou com outras organizações de um ministro é superior a de um secretário – diz Schuler.
Ortiz especula ainda que as representações de cultura regional provavelmente seriam afetadas com a extinção da pasta:
– Um comando menos significativo na esfera federal significaria um enxugamento nas outras esferas. No mínimo, diminuiria o incentivo para municípios e Estados terem suas políticas culturais.
A verba prevista para o MinC, neste ano, é de pouco mais de R$ 2,3 bilhões. A quantia para o MEC é de R$ 98,1 bilhões. Mesmo quando anunciou a Secretaria Nacional da Cultura, Temer prometeu aumentar o investimento na área. Não chegou a divulgar como seria a estrutura da secretaria, mas todos os especialistas atuantes na área consultados concordam que a transformação em si não geraria economia significativa para a União. Schuler lembra que os custos operacionais de um ministério e de uma secretaria são muito parecidos, enquanto Ortiz aponta que, entre uma opção e outra, a maior diferença seria o salário do titular.
– A transformação afetaria o simbólico e não ajudaria no equilíbrio fiscal – conclui o atual secretário estadual da Cultura do Rio Grande do Sul, Vitor Hugo.
Um ministério, muita produção
O Ministério da Cultura foi criado em 1985. Antes, a área era tratada em conjunto com a educação. Em 1990, no governo Collor, a pasta foi transformada em secretaria, mas, diferentemente do que foi proposto por Temer, era diretamente ligada à presidência. A mudança foi revertida dois anos depois.
Hoje, o MinC é formado por seis secretarias (Políticas Culturais, Cidadania e Diversidade Cultural, Audiovisual, Economia Criativa, Articulação Institucional e Fomento e Incentivo à Cultura) e tem sete entidades vinculadas, entre elas a Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Essa complexa rede de instituições é uma das questões que embasam a existência do ministério. São mínimas as similaridades com a rede da educação.
– As demandas da cultura são de outra natureza. São grandes o suficiente para merecer um órgão próprio em nível nacional – comenta Ortiz.
Schuler concorda:
– Reduzir a cultura a um departamento da gestão política da educação é uma visão limitada.
Os produtos culturais possuem valor à medida que se tornam memória histórica da sociedade. Para Vitor Ortiz, a música se transformou na principal indústria cultural do país e, por já ter alto prestígio social, tem meios próprios de sustentação. Contudo, observa que outras manifestações artísticas precisam de apoio do Estado:
– O cinema, o teatro, a dança, o circo e a música de concerto também são fundamentais e não contam com o mesmo suporte do mercado – diz.
Quem é Marcelo Calero
Diplomata pelo Instituto Rio Branco, o novo ministro da Cultura atuou no Departamento de Energia do Itamaraty e na embaixada do Brasil no México. Em 2013, cedido para a prefeitura do Rio, comandou as comemorações de 450 anos da cidade. Dois anos depois, assumiu a Secretaria da Cultura do município. Idealizou o Passaporte Cultural Rio, que dá acesso gratuito ou com descontos a peças de teatro, exposições e shows durante os períodos Olímpico e Paraolímpico, e reabriu o Teatro Serrador.
Está à frente de uma pasta que foi posta no centro dos debates atuais, em meio à turbulência política que envolve um governo de transição como este de Michel Temer. Razão pela qual, opina Schuler, não deve apresentar um novo projeto cultural – mas pode apontar “algumas saídas em termos de modernização”:
– Nos EUA, a maior parte das contribuições aos projetos culturais são feitas por pessoas físicas, que colaboram diretamente com os museus, por exemplo, sem que nenhuma burocracia a mais seja exigida. No Brasil, o procedimento para investir é complexo. E, além disso, extremamente custoso para o Estado.
O curador do Fronteiras do Pensamento defende que essa situação dá uma falsa ideia de transparência. Um sistema de regulação descentralizado, feito pelos próprios doadores poderia ser uma solução, indica:
– Será que um sistema menos burocrático não faria com que mais recursos chegassem aos projetos e não ficassem no meio do caminho?
Especial – A Cultura no Governo
Segunda (30/5): O Poder da Cultura
Quarta (1º/6): O Valor da Cultura
Sexta (3/6): A Imagem da Cultura