A comparação pode soar improvável, mas em diversas passagens Tati Bernardi, em Depois a Louca Sou Eu, lembra David Foster Wallace (1962-2008).
Não que ela o alcance, porque Wallace foi um dos escritores norte-americanos mais originais dos últimos tempos. Poder imaginativo, alcance linguístico, profundidade dos mergulhos internos: é muito difícil para qualquer autor igualar, nesses e em outros quesitos, o autor de Graça Infinita e The Pale King.
Tati Bernardi estará na Flip, que também terá importantes autores de não-ficção
Leia mais sobre Depois a Louca Sou Eu e confira trechos do livro
Insiste-se no paralelo porque ela compartilha com ele o mérito de se destacar em uma "literatura neurótica". Os dois transmitem não só em conteúdo mas em estilo suas aflições, seu humor, suas personalidades pilhadas de quem nasceu muito acelerado para o andar normal do tempo, muito angustiados consigo e com o entorno, donos de uma coleção impressionante de incompatibilidades com o mundo. Um grande ancestral dos dois nesse sentido foi o italiano Giuseppe Berto, que no autobiográfico O Mal Obscuro se mostra ainda mais hipocondríaco e paranoico que Tati Bernardi ou Foster Wallace. Seu romance tem de hilário o que tem de afoito e delirante, com 303 palavras e apenas 21 vírgulas antes do primeiro ponto final.
Tati Bernardi narra ter viajado para Ilhabela, aos 20, com um namorado preocupado se "ventaria mais ao norte, ou algo parecido, para ele praticar kitesurf". Enquanto isso, diz, "eu estava preocupada se meus pais morreriam antes do Natal, mesmo ainda sendo eles muito jovens e saudáveis (...). Estava preocupada se acordaria às quatro da manhã com um ataque intenso de pânico que inviabilizaria estar naquela pousada, namorar, tomar café, ter amigos, trabalhar, ser promovida, ser promovida de novo, ter um parto normal, ter mais um filho, (...) não sentir dor ao morrer, ter alguém que eu amasse muito e com quem pudesse ficar muito à vontade para gemer de dor e talvez estar meio suja e talvez precisar de ajuda para ir ao banheiro no dia que eu bem velhinha tivesse que morrer" (41 palavras sem respiro: Giuseppe Berto ficaria orgulhoso).
Falando da angústia de vomitar, a narradora diz ter pavor de "desencadear um vômito ancestral, um tsunami azedo, impetuoso e veloz", uma "besta-fera líquida" que a corrói.
Wallace tratou de muitas angústias afins. Uma diferença importante é que Tati Bernardi se dirige mais diretamente ao leitor, é mais explicativa, enquanto Wallace fala mais consigo mesmo, prolonga pensamentos convolutos, é mais literário. Seus personagens fissurados à espera de maconha ou deprimidos com a própria depressão vasculham nossa psique mais a fundo (ainda mais porque ele trabalha com contos e romances, um gênero em que os nossos melhores cronistas poderiam se aventurar mais). Mas Tati Bernardi também tem muito domínio de texto, tem humor, tem histórias, sintetiza vivências complexas em poucas palavras e, completando 37 anos esta semana, está entre os melhores autores nacionais hoje.
*Thiago Momm é mestre em Estudos Literários pela Universidade Complutense de Madri