A Sala P. F. Gastal da Usina do Gasômetro será reaberta nesta terça-feira após um forçado recesso de verão com a mostra Semana da Francofonia. Um dos recortes mais interessantes da programação de filmes destaca o cinema produzido na África subsaariana. É uma chance rara de conhecer títulos representativos de uma jovem cinematografia periférica que começou a tomar forma e a criar sua própria identidade apenas na segunda metade do século 20.
A mostra tem entrada franca e exibirá até domingo produções de diferentes épocas e países, com filmes assinados por, entre outros realizadores, o senegalês Djibril Diop Mambéty, o malinense Souleymane Cissé e o burquinense Idrissa Ouedraogo. Neste terça, serão apresentados na sessão de abertura, às 20h, dois títulos do Senegal: o curta documental África Sobre o Sena (1957), de Mamadou Sarr e Paulin Vieyra, considerado o primeiro filme realizado na África subsaariana, e o longa Hoje (2012), de Alain Gomis, sobre um homem que, à espera de sua sentença de morte, decide fazer do seu último dia de vida o melhor de todos.
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Depois da exibição, haverá um debate com o crítico e pesquisador Pedro Henrique Gomes, especialista em cinema africano.
– A emergência dos cinemas africanos é precisamente pós-colonial – diz Gomes. – Nascem com as independências de vários países, a maioria ex-colônias francesas, em 1960. Antes, durante a dominação colonial, com exceção do Egito e da África do Sul, ex-colônias inglesas independentes desde o início do século 20, as imagens sobre a África não eram feitas por africanos, mas pelos colonizadores. É a partir dos processos de libertação colonial que podem então florescer cinemas legitimamente africanos, isto é, feitos por africanos, para africanos, falados em idiomas africanos.
O Senegal, a propósito, é o berço desse cinema. O primeiro longa produzido na África negra por um diretor nativo negro foi A Negra de ... (1965), de Ousmane Senbene, realizador que tinha vivido na França e estudado cinema na Rússia.
– A revolta crítica contra o legado perverso do colonialismo é certamente um tema em comum a todos os países logo após as independências – afirma Gomes. – Não só no cinema, mas na literatura e na música. As lutas anticolonialistas compõem grande parte do material temático para muitos cineastas do primeiro período dos cinemas africanos. As diferenças temáticas e estéticas se manifestam de formas variadas ao longo do tempo. Países como Moçambique, Angola e Guiné-Bissau se voltam para histórias que frequentemente têm como pano de fundo as guerras civis que devastaram esses países antes, durante e muito depois das independências, conquistadas nos anos 1970. Nas cinematografias africanas francófonas, o neocolonialismo, as críticas às elites que se mantêm no poder em conluio com os colonizadores mesmo após as independências e as experiências de diáspora são questões mais presentes.
Gomes explica algumas particularidades que diferenciam a produção cinematográfica africana:
– Os países magrebinos, de cultura árabe, se diferenciam, é claro, pela língua e tudo o que ela traz da forte penetração árabe no noroeste e também no norte do continente. As demandas políticas e estéticas das cinematografias subsaarianas, ou da África negra, apesar dos diversos traços em comum, também elas se diferenciam entre si. A tarefa crítica é justamente conseguir fazer estas distinções, perceber as clivagens e as amarrações discursivas em cada cinematografia e, mais ainda, em cada obra, pois cada filme é um mundo. Se discutir o legado do colonialismo é tema caro aos cinemas africanos de uma forma geral, não é somente a isto que eles se resumem. Após uma fase mais militante, nos anos 1960, não se mantiverem estáticos, nem na forma, nem no conteúdo. De fato, várias mutações temáticas e estilísticas se observam com o desenrolar das décadas até hoje. Há países que trabalham com uma variedade maior de gêneros, como a África do Sul, o Egito e a Nigéria (até pela particularidade de suas indústrias), há países com uma forte tradição documentária e televisiva, como Moçambique.
A programação da mostra destaca na próxima quinta-feira, 24 de março, dois filmes com presença da cineasta e atriz francesa de origem senegalesa Mati Diop: o curta Atlânticos (2009), que dirigiu, e o longa 35 Doses de Rum (2008), que protagonizou sob a direção de Claire Denis, cineasta francesa que tem nas questões africanas pendentes da era colonialista um tema recorrente de seus filmes. Veja aqui a programação completa da mostra.