Afora o tênis de molinha para aliviar a maratona que o incansável Mick Jagger corre no palco mesmo sob forte chuva, a divertida displicência que Keith Richards incorporou à persona icônica que consagrou e um tanto a mais de rugas, quase nada mudou nos Rolling Stones nesses mais de 50 anos de estrada. Juntos, esses inquebrantáveis vovôs continuam a comandar um espetáculo transbordante de energia e testosterona juvenis, como o que se viu nesta quarta-feira à noite no Beira-Rio.
Porto Alegre testemunhou a celebração dos imortais xamãs do rock, dos parceiros de fé que mantêm erguida uma banda que nada mais tem a provar e a conquistar. Os setentões Jagger, Richards, Charlie Watts e o caçula Ron Wood, 68, querem agora mais é se divertir e não se deixar vencer na batalha que travam contra o tempo. Até agora, estão ganhando de goleada, com direito a olé de seus torcedores.
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Quem tem acompanhado os Stones desde que eles voltaram a correr o mundo com a turnê comemorativa de seu cinquentenário, em 2012, sabia o quão explosiva no palco do Beira-Rio seria essa combinação de festa, gana de tocar diante de uma multidão e um repertório do qual se pinça dezenas de clássicos que são capítulos fundamentais para compreender os rumos do rock'n'roll a partir do barro seminal da música negra no qual ele foi moldado. E o aguaceiro que desabou sobre o estádio, encarado sem frescuras pelos músicos, deu ao espetáculo um tom épico.
As versões atuais para hinos como (I Can't Get No) Satisfaction, Jumpin' Jack Flash, Brown Sugar e Start me Up, consagrados no imaginário popular com seus antológicos riffs, soam ainda mais cruas e viscerais agora nas mãos de Richards, músico que, como poucos de sua geração, soube compreender que a técnica nesse ofício tem pouca serventia quando não é movida por coração e alma. Richards, esse figuraça sobrevivente de todos os excessos possíveis, está mais vivo e esperto do que nunca. Na seu tradicional solo ao microfone, ele escolheu para a Capital You Got The Silver e Before They Make Me Run.
Wood, por sua vez, é o coadjuvante que, com sua elegância e precisão, sabe como brilhar quando se torna o protagonista. A sintonia dele com Richards é cósmica, como se viu em Out of Control e Honky Tonk Women, entre outros grandes momentos da dupla.
A impressionante energia de Jagger renova o fôlego de faixas como Miss You, que conta com um show à parte do baixista Darryl Jones amplificando o irresistível groove que sacudiu as pistas de dança no final dos anos 1970. Jagger mostrou já ter se afinado com a novata na turma Sasha Allen, vocalista que substituiu Lisa Fisher nesta Olé Tour. A garota exibiu suas credenciais em Porto Alegre no dueto de Gimme Shelter, desfilando com o vocalista na passarela encharcada.
Em outro momento historicamente emblemático da banda ao vivo, Jagger mostra sua versatilidade como performer na apresentação catártica de You Can't Always Get What You Want. Colocada no set list para abrir o bis, a faixa contou com a competente participação do coral da PUCRS.
Mas o segmento pivotal do show, aquele que dá a medida do pico de energia e sabedoria que os Stones ainda são capazes de atingir sobre o palco, talvez seja Midnight Rambler. Desde que foi gravada em Let It Bleed (1969), essa faixa passou a ganhar ao vivo interpretações viscerais que sintetizam o caminho trilhado pelos Stones: de banda cover dos mestres do rhythm and blues a autores de um repertório que fez deles fiéis depositários do legado de seus ídolos. Não foi diferente no Beira-Rio, com Jagger puxando o trem para o Delta do Mississippi com sua gaitinha de boca e entregando-se a uma interpretação febril, com Richards e Wood arrancando faíscas de suas guitarras.
A cada vez que tocam Midnight Rambler, tomados pelo transe lascivo de quem fez um pacto na encruzilhada com o diabo encarnado por Jagger em Sympathy for the Devil, os Stones deveriam ganhar mais 50 anos de vida. Seria uma troca muito justa.