"Eu acho que a maioria das pessoas está completamente louca com a situação do país", diz José Leonilson nos primeiros minutos de A Paixão de JL, documentário a ele dedicado, em cartaz no Espaço Itaú (com entrada gratuita).
Bem poderia ser um comentário do artista sobre o clima atual da política brasileira, mas as imagens que acompanham sua fala - e o fato de ele ter morrido em 1993, aos 36 anos - deixam claro que se trata do momento em que o país afundava na incerteza da crise da Era Collor e o decorrente impeachment. Mude-se o tempo para a situação de hoje, e o cenário de instabilidade só terá outros personagens e contexto.
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A atualidade da fala de Leonilson tem muito a ver com a permanência de sua obra. Foi da vida pessoal que ele retirou os principais elementos dos trabalhos que fez ao longo de uma celebrada carreira, interrompida pela morte em consequência da aids. E é essa entrega íntima e confessional, com a qual ele manteve borradas as fronteiras entre arte e vida de uma forma tão delicada e poética, um dos principais motivos que fazem com que sua obra se mantenha forte e atual.
Produzido pelo Itaú Cultural e vencedor do festival É Tudo Verdade em 2015, A Paixão de JL é um documentário biográfico e afetivo sobre um artista que, com seus desenhos, pinturas e versos bordados, procurava oferecer uma arte que fosse "amorosa e romântica". O filme se baseia em um diário que Leonilson começou a registrar em 1990, gravando pensamentos e reflexões em fitas cassete nos três anos que se seguiram até sua morte.
O diretor Carlos Nader, que assina documentários como Eduardo Coutinho, 7 de Outubro e Pan-Cinema Permanente (sobre Waly Salomão) e foi amigo de Leonilson, estrutura o documentário a partir das narrações do artista enriquecendo o imaginário dessas falas com imagens sensoriais e de obras, especialmente os últimos desenhos e bordados, a etapa mais poderosa de sua produção.
Aqui, não há ilustração de pensamentos: as imagens ampliam os significados das narrações, sem demarcar onde termina a realidade e começa a fantasia. O contexto do período é ilustrado pelo noticiário brasileiro, e também por acontecimentos como a queda do Muro de Berlim, a Guerra do Golfo e a cultura pop de então - músicas de Madonna e Annie Lennox e filmes de Derek Jarman e Wim Wenders (Paris, Texas e Asas do Desejo) são citados a toda hora nos áudios dos diários e aparecem em imagens como pano de fundo de época.
Não há entrevistas ou depoimentos, só as confissões de Leonilson na etapa derradeira da vida, compondo uma narrativa gradativamente mais dolorosa, o que confere um tom ao mesmo tempo assombroso e encantador. Ouvir esses registros hoje é como escutar o artista sussurrando ao pé do ouvido, confidenciando os fantasmas, as dores e as angústias que o acompanharam de forma ainda mais dramática após o diagnóstico do vírus e os tempos que se seguiram com a evolução da doença e a sentença de morte.
O impacto e a qualidade de A Paixão de JL vêm dessa opção estética e de linguagem que evita o caráter didático de um registro mais documental, convidando o espectador a mergulhar na alma do biografado a partir de sua própria fala e de como o universo íntimo se rebateu poeticamente em seus trabalhos.
O Leonilson dessas gravações é carente, inseguro, frágil. E tem muitos medos: das desilusões amorosas, do avanço da idade, de ficar sozinho. Oscilando entre a alegria e a tristeza, parece sempre em desespero inconsolável. Mas também quer viver muito, levado pelos instintos dos desejos, deixando-se seduzir e apaixonar. Suas narrações revelam estar sempre à procura de um amor e da felicidade que tanto busca em meio à solidão causada pelas decepções da vida: "Vejo nos caras o lugar que estou procurando. Mas eles são apenas paisagens lindas no meu caminho", diz em uma das gravações.
Quem conheceu Leonilson afirma que ele tinha uma personalidade mais forte do que o ser melancólico que as gravações das fitas sugerem. Terá ele construído uma figura pública para a posteridade, ficcionalizando sua personalidade? Tirando força dessa pergunta, A Paixão de JL nos coloca em contato com o mundo interior de um artista movido obsessivamente por seus sentimentos, dramas, sonhos e fantasias. E que fez dessa tortuosa e infindável jornada pessoal o material e a potência de sua motivação artística.
A PAIXÃO DE JL
De Carlos Nader
Documentário, Brasil, 2015, 82min. Em cartaz no Espaço Itaú, às 18h. Sessão gratuita.
Cotação: 5 de 5