Trajes elegantes, carros importados e doses de uísque, ou melhor, "scotch" a preços astronômicos. Assim era a vistosa noite carioca da década de 1940, onde os grã-finos da época podiam ir de boate em boate com um copo na mão até os primeiros raios de sol fulminá-los – alguns destes senhores, ministros e assessores da presidência, davam um trato no visual em barbearias convenientemente instaladas no subsolo das casas noturnas e iam direto para reuniões e outros compromissos matutinos.
Foi nesse meio frequentado pelas elites do país que surgiu um dos gêneros musicais mais populares da época, o samba-canção. Capazes de desbancar quaisquer atrações internacionais nas rádios e lojas de discos, nomes como Dolores Duran, Maysa, Nora Ney,Dick Farney e Miltinho foram algumas das vozes que divulgaram essa mistura de ritmo brasileiro com a suavidade e a poesia da canção. A história desses e muitos outros personagens é resgatada agora no livro A Noite do Meu Bem, no qual seu autor, Ruy Castro, leva o leitor pela mão em um passeio inebriante por duas décadas de boemia carioca.
Apesar de ter títulos sofridos como Ninguém me Ama (Antonio Maria-Fernando Lobo), Fracasso (Mario Lago) e Até o Amargo Fim (Newton Teixeira e David Nasser), o samba-canção nasceu em um ambiente badalado e, para Ruy Castro, espelha também essa euforia: "É a música a que duas pessoas apaixonadas sempre poderão recorrer quando sentirem o seu amor em perigo", escreve. O início do livro recupera a história da boemia carioca a partir do fim decretado dos cassinos, que abriu caminho para o florescimento das boates, espaços em que homens só entravam de terno e gravata, e mulheres, acompanhadas. Foi nos palcos intimistas desses espaços que o samba perdeu força no ritmo para ganhar mais delicadeza nas melodias e dramaticidade nas letras.
A narrativa sobre o abre-e-fecha de estabelecimentos, bem como os erros e acertos de empresários, garçons e maîtres que permitiram o êxito ou o fim das casas, só não é enfadonha por conta da prosa elegante e sutilmente bem-humorada de Ruy Castro. O autor relaciona as mudanças físicas da então capital federal com as transformações do poder, constituindo uma rica (e divertida) aula de história.
Para ler e ouvir
Depois da primeira centena de páginas, A Noite do Meu Bem se centra na produção musical, contando desde bastidores de composições até detalhes da vida de ídolos da época. A rivalidade musical entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, que desfizeram um casamento repleto de violência doméstica, mas seguiram discutindo no rádio por meio das letras de suas canções, é apenas um dos vigorosos resgates do livro, que reconstitui o passado atribulado de nomes como Nora Ney e Doris Monteiro.
O livro se entende até o início dos anos 1960, quando, entre outras circunstâncias, o Rio deixa de ser a capital do país, e o samba-canção começa a dar as bases para a música que nascia na cidade, a bossa nova.
Ao final, estão 80 páginas com bibliografia, discos e filmes recomendados, além de uma "cançãografia" com mais de 500 faixas indicadas _ quase todas acessíveis na internet. São ferramentas para o leitor fazer uma imersão mais profunda em noites que tinham um permanente ar de sedução e a música era a maior de todas as vedetes. Difícil será voltar do mergulho e ligar o rádio outra vez.
Algumas histórias do livro:
A volta de Noel Rosa – Onze anos depois de sua morte, Noel Rosa (acima) já estava esquecido no Rio: havia desaparecido das rádios e das lojas de discos. Foi Aracy de Almeida quem fez o nome do poeta da vila voltar à tona, quando convidada a se apresentar na boate mais prestigiada da cidade, o Vogue, em 1948. O repertório da cantora era centrado na obra de Noel, e a interpretação, acompanhada do pianista americano Claude Austin, fez toda a plateia perceber "que todos aqueles grandes sambas de Noel eram… sambas-canção", escreve Ruy Castro. As apresentações motivaram o resgate fonográfico do compositor: "O Vogue fez surgir um novo Noel, maior até do que em vida, e para sempre", sentencia o livro.
Araca em Copa – A ideia do Vogue contratar Aracy de Almeida (abaixo) não fazia sentido para muita gente. A refinada boate de Copacabana parecia a antítese dos lugares que Araca costumava frequentar, como os bares da Lapa e de outros redutos de malandros, navalhas e palavrões da cidade. Para Ruy, foi provavelmente a insistência de alguns playboys admiradores da cantora que convenceram a direção da boate de que, apesar de parecer grossa, Aracy tinha um lado "fino" _ lia Augusto dos Anjos, ouvia jazz e Beethoven e "seus cachorros comiam filé e dormiam em edredom". A plateia logo se apaixonou pela cantora: mesmo quando bradava para o público, às 4h da madrugada, "cansei de cantar. Vão tomar no cu!", recebia aplausos gerais.
Dalva X Herivelto – Quando casados, Dalva de Oliveira e Herivelto Martins eram inimigos íntimos. A cantora (ao lado) chegou a perder um bebê por conta dos socos e pontapés recebidos do marido ao contar sobre a gravidez. Já em outra ocasião, Herivelto (abaixo) teve a cabeça aberta por um cinzeiro arremessado pela mulher. Depois de separada, a cantora começou a triunfar no rádio, e a animosidade entre ambos cresceu. Tanto os sucessos cantados por ela, como Que Será e Errei, Sim, quanto os compostos por ele (Caminho Certo e Perdoar), continham provocações, que ganhavam repercussão na imprensa. O jornalista David Nasser chegou a criar para Herivelto uma série de textos no vespertino Diário da Noite, com artigos intitulados Dalva, rainha do despudor e (Dalva) Não é mãe; teve filhos, entre outros, mas não foi capaz de abalar o amor do público pela cantora.
Lupi - O livro explica que a história de Nervos de Aço, supostamente escrita depois que Lupicínio Rodrigues (acima) fora abandonado por sua noiva, ajudou a criar a lenda, estimulada pelo próprio compositor, de que todas as canções do gaúcho refletiam histórias por ele vividas. Ruy lamenta: "Não era verdade, e só servia para reduzir Lupicínio a uma espécie de cronista da cornitude, quando o que importava era o seu poder, quase insuperável, de penetrar no coração masculino". A Noite do Meu Bem também conta por que, nos anos 1940, o nome de Lupi era geralmente associado ao do cantor Francisco Alves, que popularizou canções como Esses Moços e Cadeira Vazia (esta, em parceria com Alcides Gonçalves), e de como foi importante quebrar esse aparente monopólio.