João Roberto Kelly divide com Lamartine Babo e Braguinha a posição de maior criador de sucessos da história do Carnaval de salão. A diferença é que ele está vivo e em atividade, aos 77 anos. Em 2014, sua marchinha mais famosa, Cabeleira do Zezé, completou 50 anos - e desde o início está entre as 10 maiores arrecadações de direitos autorais no período carnavalesco. Foi sua primeira marchinha, composta na mesa de um bar, por inspiração de um garçom cabeludo fã dos Beatles. No ano seguinte, 1965, outra campeã, Mulata Iê-iê-iê. Em seguida, Maria Sapatão; depois, Bota a Camisinha. E assim por diante. As histórias dessas e de outras músicas e da vida do compositor estão no livro Cabeleira do Zezé, resultado de longas conversas com o músico e cineasta André Weller (que em 2010 já realizara o documentário No Balanço de Kelly).
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Não é exatamente uma biografia mas um livro de memórias. Carioca típico, boêmio à moda antiga, João Roberto Kelly toca piano desde menino, época em que, nos bailes de Carnaval, ficava a maior parte do tempo admirando a orquestra. Tornou-se músico profissional aos 18 anos. O primeiro sucesso veio aos 23, em 1961, na voz de Elza Soares: o samba Boato. Nos dois primeiros discos de Elis Regina há músicas dele. Foi gravado pelos astros e estrelas do rádio. São mais de 250 composições, a maioria das décadas de 1960 e 70, várias de grande sucesso. Simpático, talentoso, bon-vivant, discreto, acostumou-se a ver as portas se abrindo. Brilhou nos principais programas das TVs cariocas, como Times Square, My Fair Show e Rio Dá Samba; vivia cercado de amigos e amigas, era muito popular, um personagem e tanto.
O livro é Kelly contando seus causos saborosos, em meio aos quais estão as transformações vividas pelo Rio - e por tabela, o país. Os bailes de Carnaval, que lhe deram a glória, quase desapareceram. Ele não lamenta, apenas menciona a importância histórica das marchinhas como crônicas das mudanças sociais e oásis de crítica política em meio às canções românticas do "resto do ano". Mas embora os temas sejam os mais diversos, Kelly mostra-se especialmente à vontade falando de mulheres. Por exemplo: certa vez, no dia de seu aniversário, chegou em casa e encontrou uma enorme caixa no meio da sala. Ao abri-la, salta uma garota espetacular, dizendo: "Eu sou o presente que o Imperial mandou pra você"... O pândego Carlos Imperial foi um de seus grandes amigos, entre tantos em uma vida repleta de boas lembranças.
CABELEIRA DO ZEZÉ, de João Roberto Kelly e André Weller - Memórias, Irmãos Vitale Editores, 164 páginas, R$ 47.
Festa da Música vem para Porto Alegre
Depois de 11 anos em Canela, a Festa Nacional da Música passa a ser itinerante, e a primeira edição da nova etapa será em Porto Alegre, de 9 a 19 de outubro deste ano. Fernando Vieira, seu realizador, diz que o principal objetivo da mudança é dar mais visibilidade à Festa. O maior evento do gênero no país caracteriza-se por reunir centenas de artistas de todos os gêneros, produtores, empresários e profissionais do mundo da música, para confraternizar e debater - na última edição, foram cerca de 700 convidados. Se em Canela eram três dias de agitos, em Porto Alegre serão 10, com palcos no Brique, no Mercado Público, na Rua da Praia, no Gasômetro, em dois ou três bairros e no Auditório Araújo Vianna, sempre mesclando artistas locais e nacionais. Os dois últimos dias da Festa ocorrerão no Hotel Plaza São Rafael, com os painéis e mesas redondas nas manhãs e tardes e a tradicional entrega de troféus aos homenageados à noite. Fernando promete divulgar a programação total em março.
ANTENA:
Multiplicar-se Única, de Regina Machado
Dedicado à música de Tom Zé, este é o quarto disco da cantora paulistana. Ouça e saboreie com calma, pois é provável que só daqui a cinco anos ela lance outro. Tem sido assim. Formada em música pela Unicamp (onde dá aulas de Canto Popular), com doutorado em Semiótica e Linguística pela USP, Regina gravou o primeiro álbum em 1998, o segundo veio em 2005 e o terceiro, em 2010, todos recebidos com unanimidade de elogios pela crítica. Desta vez ela foi mais fundo, concentrando sua esplêndida voz em um compositor pouco cantado por outros devido à singularidade de sua obra, à dificuldade de reprocessá-la. Com Multiplicar-se Única Regina também dá uma volta no tempo, pois começou a carreira como vocalista da banda de Tom Zé nos anos 1980. Chamou para ajudá-la na produção e nos arranjos o compositor e violonista Dante Ozzetti, que chamou o sempre ótimo percussionista Guilherme Kastrup. O resultado é muito feliz, surpreendendo ao próprio Tom Zé: "Eu não esperava que ninguém mexesse nos arranjos que fiz porque são muito justos, mas, na hora em que ouvi essas gravações, foi como se tivesse redescoberto essas canções". São músicas (a maioria sambas) de várias fases, de Augusta, Angélica e Consolação (1973) à João nos Tribunais (2008), passando por O Amor É Velho-Menina, Complexo de Épico, Solidão, Menina Jesus. Participações especiais de, entre outros, Suzana Salles e Wandi Doratiotto. Um dos mais belos trabalhos que ouvi ultimamente. Canto Discos/Tratore, R$ 25
Café do Bule, de Zeca Baleiro, Naná Vasconcelos e Paulo Lepetit:
No final dos anos 1990, o maranhense Baleiro, sabendo que o pernambucano Naná gostaria de trabalhar com o paulista Itamar Assumpção, apresentou os dois. Com produção do também paulista Lepetit, eles fizeram o disco Isso Vai Dar Repercussão, que com a morte repentina de Itamar, em 2003, acabou sendo lançado postumamente. Mais tarde, Zeca associou-se a Lepetit em um estúdio de gravação em São Paulo, e surgiu a ideia de convidarem Naná para um trabalho em trio só com músicas inéditas. Assim nasceu o projeto Café no Bule, com o significado de que "aqui tem conteúdo". O álbum foi sendo gravado durante dois anos, em três vindas de Naná a São Paulo. A ideia era mesmo mesclar três experiências distintas, sem nada preconcebido. "Fomos fazendo", diz Naná. "Eu fiz algumas letras, o Zeca completou. Ele e o Lepetit colocaram melodias. Já os batuques são ideias minhas, englobando ritmos como a ciranda, o xote, o maracatu." Mas também tem afoxé, blues, rock, jazz. Eles assinam juntos 12 das 13 músicas. E eu garanto: do início ao fim, é uma festa em clima de alto astral, com Baleiro e Lepetit tocando violão, guitarra, ukulele, cavaquinho, baixo, teclados, e Naná com seus mil tambores, todos nos vocais (Baleiro está cantando muito). Claro que passaram pelo estúdio vários amigos músicos, como Adriano Magoo, Webster Santos, Tuco Marcondes, e instrumentos como piano, trompete, violoncelo, sax, violino. É um CD que funciona como antidepressivo. Selo Sesc, R$ 24