Se Stravinsky foi o compositor mais vistoso da primeira metade do século passado, Pierre Boulez foi o compositor mais incontornável da segunda metade. Apareceu no final dos anos 1940, vanguardista de primeira hora saído das ruínas da II Guerra para inventar a música de concerto a partir do zero. E assim foi: em música, em escritos, em agitações, amizades e inimizades. A obra máxima da vanguarda musical dos 1950 é dele: Le Marteau sans Maître ("O martelo sem mestre"), música de câmara em que as credenciais de compositor são apresentadas sem dúvidas. A organização da peça é rígida, mas a expressividade do que se ouve engana a rigidez; o texto é do surrealista René Char, a mostrar que os poetas serão para sempre presença (e ausência) na música de Boulez. É como compositor que Boulez vai abrindo o seu baralho - logo surge a obra maior, Pli Selon Pli ("Dobra após dobra"), com texto de um poeta também maior, o Stéphane Mallarmé de tantas fertilizações nos compositores do século passado.
Pierre Boulez morre aos 90 anos na Alemanha
Leia todas as notícias de Música
De compositor Pierre Boulez se transformou em maestro de orquestras pelo mundo afora. Em Paris, é óbvio, onde ele fundara o Domaine Musicale para mostrar ao público francês a música que ele, Boulez, achava fundamental que se ouvisse. Depois Londres, Cleveland, Nova York, Chicago. Até o festival wagneriano de Bayreuth, na Alemanha, lugar estranhíssimo para um compositor da vanguarda dos 1950, mas que fez surgirem algumas interpretações insuperáveis. Boulez tinha uma regência maleável.
Não usava batuta, e os dedos das mãos estavam sempre distendidos, moldando a música no ar diante do ouvinte, para que se visse, tanto quanto se ouvisse, os sons que saíam daquelas mãos e daquelas orquestras. No repertório, Debussy, Stravinsky, Bartók e Wagner. Mas também Händel, Dallapicolla, Manuel de Falla, Alban Berg e... Frank Zappa.
E, de regente, Pierre Boulez se fez empreendedor. Convenceu Georges Pompidou a incentivar a criação de um centro de pesquisas musicais. Lá está, hoje, o IRCAM (o Instituto de Pesquisas e Coordenação Acústica/Música), edifício bizarro enterrado ao lado do Centro Pompidou.
Desde os anos 1970, o IRCAM é irradiador de tecnologias e de compositores. Ali os músicos encontram todos os meios para que computadores interajam com música; os softwares criados ali são utilizados em centros de música e tecnologia no mundo todo, de Bangkok a Porto Alegre. Boulez tinha deixado o IRCAM há bastante tempo, bem encaminhado na vida, mas a Cité de la Musique também foi ideia do seu lado empresário, assim como a Filarmônica de Paris e sua sala hipermoderna, das quais - como dizem - Boulez foi o "pai espiritual".
Para onde quer que se olhe ou ouça na música de concerto dos últimos 70 anos, Pierre Boulez estará lá - como protagonista muitas vezes, como antagonista outras tantas vezes. Le Marteau sans Maître é obra para ser ouvida para sempre, assim como Pli Selon Pli. A gravação de Parsifal de Wagner e a integral de Claude Debussy são registros incontornáveis. O IRCAM, submerso em concreto, é o legado mais duradouro entre todas as suas obras ideológicas. E há o Boulez escritor, polemista, ensaísta. A Música Hoje está nas livrarias e é um bom lugar para começar a entender a filosofia bouleziana. Mas, antes de tudo, a morte de Pierre Boulez assinala o fim definitivo da música de vanguarda dos anos 1950 - todos já se haviam ido, restava ele. Ele se foi, mas para onde quer que se olhe ou ouça...
* Músico e colunista do 2º Caderno
A TRAJETÓRIA
> Pierre Boulez nasceu em 26 de março de 1925 em Montbrison, na região do Vale do Loire, na França.
> Nos anos 1940, foi aluno de Olivier Messiaen no Conservatório de Paris, no qual travou contato com a técnica de composição das 12 notas. O dodecafonismo teve como pioneiros o trio formado por Schoenberg, Berg e Webern.
> O prestígio internacional veio nos anos 1950, com obras como a Segunda Sonata para Piano e Le Marteau sans Maître, que se valiam da técnica das 12 notas e a expandia.
> Com o apoio do presidente francês Georges Pompidou, Boulez criou, nos anos 1970, um centro de referência na música contemporânea eletroacústica. O IRCAM abriu as portas em 1977, tendo como grupo residente o Ensemble Intercontemporain.
> Nos anos 1960, consolidou também uma prestigiada carreira como regente, atividade que o acompanhou pelas décadas seguintes, sem que tivesse deixado de compor, à frente dos mais prestigiados conjuntos, como o Concertgebouw de Amsterdã e as Filarmônicas de Berlim e Nova York.
Luto
Celso Loureiro Chaves: morte de Boulez assinala fim da vanguarda dos anos 1950
O francês foi o compositor mais incontornável na segunda metade do século 20
GZH faz parte do The Trust Project