Gaúcho de Quaraí radicado no Rio de Janeiro e pianista erudito de reconhecimento internacional, Miguel Proença não tem tido sorte como comprador de pianos. Primeiro foram os dois Steinway & Sons que ele comprou em 2012 para o Teatro do Sesi (do qual era diretor artístico), inutilizados em agosto do ano seguinte, quando o rompimento de um dique inundou o local onde se encontravam. Agora, a prefeitura de Uruguaiana anuncia para a próxima terça-feira o leilão do Steinway comprado também em 2012, por encomenda do então prefeito Sanchotene Felice – e que até hoje sequer saiu da caixa em que veio da Alemanha. Valor do lance inicial: R$ 500 mil.
Em 15 de setembro de 2015, o atual prefeito, Luiz Augusto Schneider, sancionou uma lei aprovada pela Câmara de Vereadores que autoriza o Executivo a leiloar o piano. Diz o artigo 2º: "Considera-se o piano, para todos os fins, como bem inservível ao município, por se tornar inviável a sua efetiva utilização, haja vista a inexistência de ambiente específico, ideal e adequado para sua instalação, conservação e manutenção". O artigo 5º antecipa que "o leilão servirá para disponibilizar recursos ao Hospital Santa Casa de Caridade de Uruguaiana e evitar prejuízos ao erário".
– É um instrumento de referência mundial, mas está totalmente fora de nossa realidade, temos uma dívida de R$ 101 milhões – diz Schneider.
Fabricado em Hamburgo, o Steinway & Sons, modelo Gran Concerto, D-274, é considerado o melhor do mundo. Custou o equivalente a US$ 200 mil e muitas críticas a Sanchotene – que, graças a ele, responde a uma ação por improbidade administrativa.
Sanchotene Felice justifica que a compra do piano fez parte de uma série de investimentos em cultura durante a sua gestão frente à prefeitura, entre eles a instalação da Escola Livre de Belas artes e a construção do Teatro Rosalina Pandolfo Lisboa.
– Este leilão consuma erro imperdoável na cultura rio-grandense, sobretudo da região da Fronteira Oeste – afirma o ex-prefeito, que atribui a uma questão política o fato de o piano nunca ter sido usado.
O ex-prefeito sonhava com grandes concertistas no palco do Teatro Rosalina Pandolfo Lisboa, construído em sua gestão nas antigas dependências do Cine Pampa (onde se realizaram as primeiras edições da Califórnia da Canção). Mas a realidade foi contra. Apenas a montagem do piano custaria um dinheiro que a prefeitura não tem. E as atrações? E a manutenção? E o afinador, que teria que vir de fora?
– A situação do país é complicada, há necessidades maiores do que ter um piano desses em uma cidade como Uruguaiana – diz Person Losekann, técnico da Steinway & Sons para o sul do Brasil.
– É um piano muito específico, não sei quem pode adquiri-lo aqui, talvez a Fiergs, para o Teatro do Sesi, ou a Unisinos, para o teatro que está construindo em Porto Alegre.
Para o "padrinho" Miguel Proença, Leilão é uma atitude "cômoda"
Há três anos na caixa, guardado de lado, em ambiente impróprio, o instrumento estará em perfeitas condições? Losekann imagina que ajustes terão de ser feitos em seu mecanismo, principalmente nas hastes dos martelos. Mesmo assim, "se eu tivesse perto de R$ 500 mil compraria de olhos fechados".
Martelos? Leiloeiro oficial de Uruguaiana, Marcos Vinicius Quadros se "voluntariou" para fazer o leilão, que chama de "beneficente", pois o valor arrecadado irá para a conclusão de prédios e aquisição de equipamentos para a Santa Casa de Caridade, referência em oncologia e neurocirurgia. Ele fez contatos com 20 possíveis interessados em São Paulo, Rio, Curitiba e Porto Alegre. Do alto de seus 20 anos de experiência, otimismo não lhe falta, pois às 16h de terça-feira, no Salão Nobre da prefeitura, estará vendendo "uma joia". Se não puder pagar à vista, o comprador poderá dar 50% de entrada e o restante em três parcelas.
E o que diz disso tudo o "padrinho" do piano? Miguel Proença ficou irritado quando soube:
– Acho absurdo, parece leilão de cavalos! O piano é um símbolo da cultura, poderiam com ele atrair grandes artistas, trabalhar com intercâmbios, ser um polo cultural. Não mediram o que daria de mídia Uruguaiana ter um piano desse nível. O povo uruguaianense não vai conhecer o som de um instrumento nobre. Os administradores tiveram uma atitude cômoda. Não é com a venda que a saúde vai melhorar.