Júpiter Maçã (ou Jupiter Apple) tinha show marcado para a noite desta terça-feira. Seria a segunda apresentação de um novo projeto que ele estreou no Panamá Studio Pub, misto de bar e estúdio na Cidade Baixa que havia descoberto há pouco e, desde então, se tornado frequentador.
A história de Júpiter é também aquela do artista incompreendido a procurar pessoas e lugares que acolham e incentivem suas ideias, sempre artisticamente ousadas, mas também sempre muito refinadas e informadas, fruto do modo sensível e inteligente com que se apropriava e reprocessava infinitas referências da cultura rock e psicodélica dos anos 1960 e 1970. Alguns minutos de papo e logo descobríamos que Júpiter era um profundo conhecedor das obsessões sobre as quais orbitava: Beatles, Stones, Pink Floyd e detalhes microscópicos das profundezas das biografias de todas as bandas e os artistas icônicos dessa era apareciam como metáforas, ilustrações de pensamento ou até mesmo epifanias nonsense na fala do personagem que ele criou para si e do qual nunca mais se desvinculou. Quase sempre, dava um jeito de ficcionalizar momentos de sua própria história, aproximando-os de episódios protagonizados por gente como Lennon e Dylan, alguns de seus ídolos. Entre o homem e o personagem, Flávio Basso sempre preferiu o segundo, o qual chamou de Júpiter Maçã a partir da metade dos anos 1990 e, logo depois, de Jupiter Apple.
Foi no Panamá Studio Pub, por exemplo, que ele reencontrou, depois de muito tempo, o baterista Alexandre Barea, seu colega dos tempos de Os Cascavelletes. Havia nesse lugar um ambiente receptivo para Júpiter recomeçar, novamente, como muitas vezes tentou nos últimos anos. Agora, ele havia montado uma nova banda com a pretensão de sair em turnê pelo país. Como um momento preparatório, bolou um sarau eletroacústico, no qual apresentaria canções, entre clássicos e novidades, intercaladas por contos eróticos (sim, isso mesmo).
Eu estava na estreia do show, no último dia 5, que acabou sendo a última apresentação ao vivo de Júpiter na Capital. O Panamá é um bar pequeno. Tem alguns sofás onde o pessoal se acomoda, o que confere um clima de se estar em casa. Fui ao show sozinho, movido pelo desejo de ver Júpiter tocar alguma música do "Plastic Soda" (1999), disco que, por algum daqueles motivos sem explicação, eu havia redescoberto e estava ouvindo nos últimos dias. Me perguntava o que se passava no interior da mente criativa daquele sujeito que, depois da irretocável e aclamada estreia solo com "A Sétima Efervescência" (1997), tinha se transmutado de Júpiter Maçã para Júpiter Apple e lançado aquele álbum todo cantado em inglês, uma releitura genial e geniosa da bossa nova pela psicodelia, que resultou em um biscoito fino e precioso para a música brasileira. Mesmo.
Veja imagens desse show:
Completava a aura cult do disco o fato de Júpiter nunca mais ter apresentado suas músicas ao vivo. Era mesmo difícil imaginar como ele tocaria os sofisticados arranjos bossa-novísticos ao violão, dada sua situação atual e as performances mais recentes, a maior parte delas marcada por um comportamento fora de controle e imprevisível. A verdade é que não se sabia onde terminava a pessoa e começava o personagem.
Nessa noite no Panamá, que foi também seu último encontro com o público de Porto Alegre, eu vi Júpiter aparecer no bar um pouco antes do show. Chegou apressado e estava um tanto nervoso quando se dirigiu ao dono no balcão. Não consegui ouvir a conversa deles, apenas Júpiter dizendo "vamos, tem que ser agora". Foi quando o cara do bar encheu um copo com destilado e Júpiter o ergueu com uma das mãos – e aí vi que elas tremiam – e virou de uma vez só. Quando soltou o copo vazio, ele logo sacou que eu observara toda a cena do meu camarote no sofá. Pareceu um pouco constrangido ao ser pego no flagra que eu acabara de testemunhar. E soltou: "Hey, man, temos um show daqui a pouco". Sorriu rápido e, ainda meio assustado como chegou, zarpou rapidinho dali, provavelmente de volta ao camarim.
Frank Jorge, sobre Jupiter Apple: "Cara complexo, sensível, talentoso como poucos"
Os dois caras sentados no sofá do meu lado também viram a cena. Antes, aquele papo sobre qual é a obra-prima do Júpiter ou a melhor da versão da música X já havia nos aproximado. Eles eram fãs que saíram de casa, também sozinhos, só para vê-lo cantar e tocar. E, pelas suas caras, repreenderam o ato falho do ídolo em seu drama etílico, ao mesmo tempo em que o toleraram com a compreensão que é própria dos admiradores. "Bah, que foda, tanto talento e genialidade...", foi um dos comentários que trocamos.
Resolvi conversar com o cara do bar, que me confidenciou que Júpiter havia dado uma fugida do camarim onde estava com seus músicos para ir atrás daquela dose. Também me contou que ele não usava outras drogas, pelo menos não mais, e que o grande e principal problema dele era a dependência alcoólica. Por isso a pressa, a ansiedade, o nervosismo, as mãos tremendo, o quase-pânico.
Passou um tempo e, enfim, o show começou. Júpiter sentadinho ao violão, com a banda ao redor. Revisitou seu repertório, interpretando músicas em versões com andamentos mais lentos e outras com arranjos reinventados. Parecia um improviso de si mesmo, por isso único. Tocou hits e obscuridades, todas igualmente conhecidas e aplaudidas pela plateia de admiradores. Entusiasmado, encontrei o estímulo para soltar em voz alta: "Toca Plastic Soda!!!".
Eu estava a não mais que dois metros de Júpiter, o que o deixava em situação um tanto constrangedora caso o pedido não fosse atendido. Ele me olhou e disse: "Ok, man". E começou a cantar a música. De fato, não tocou o arranjo original de violão que criou para a música, mas ter cantado a letra me bastou. O restante da apresentação reservou alguns momentos doidos, com Júpiter gritando ao microfone; e outros complacentes, com ele esticando a duração das músicas que encontravam agrado geral do pequeno público. Foi um baita show, à moda de Júpiter: ele atuando e sua plateia ovacionando. A encenação do seu universo de fantasia, ao mesmo tempo em que o apartava da ordem das coisas, também o deixava desprotegido e suscetível ao lado perverso dessa opção.
Fiz fotos e gravei vídeos. Logo eu, que não sou dado a isso, que raramente me comporto como fã. O que, agora, parece ter sido algo premonitório. No dia seguinte, fui a um evento em uma galeria de arte e, por acaso, comecei a trocar papo com um cara sobre Júpiter. Ele o conhecia bem e tinha me ouvido comentar com outra pessoa sobre o show que ele havia feito na noite anterior. Me perguntou como foi, e eu falei mais ou menos o que estou contando aqui. Ele disse que o Júpiter não tinha jeito, ninguém conseguia domá-lo, nem família nem amigos. E que não havia outro jeito senão deixá-lo fazer as coisas como bem entendesse. Mas o que mais me marcou da conversa com esse cara, que nem o nome eu sei, foi que ele me disse que Júpiter andava falando sobre a morte. De gravar o último disco antes de morrer, de deixar uma obra para poder morrer.
Júpiter não lançou o disco, mas partiu tendo feito esse show para os poucos, mas fiéis admiradores, que testemunharam o ato final desse artista, que sempre viveu dos altos aos baixos, sem meios-termos, entre o gozo criativo sem concessões e o drama comum aos excêntricos inadequáveis e desencaixados.