Existem séries. E existe Black Mirror.
Não que o programa britânico criado por Charlie Brooker seja a melhor coisa feita para a TV, mas é incomparável a qualquer outra. Em apenas seis episódios, exibidos em duas temporadas, e mais um especial de Natal, Black Mirror criou uma aura de culto em seu entorno e angariou fãs que vão de Stephen King a Robert Downey Jr. Agora, quatro anos depois da estreia e um ano após o último episódio exibido, a Netflix disponibilizou sem muito alarde todo o conteúdo da atração, com uma promessa: retomá-la em uma terceira temporada, com 12 episódios, prevista para o ano que vem.
Em entrevista ao Channel 4, emissora que transmitiu Black Mirror na Inglaterra, Brooker afirmou: "Há muitos programas que reafirmam coisas, eu quis fazer um que desestabilizasse as pessoas". As estranhezas da série começam por sua estrutura: as primeiras duas temporadas têm apenas três episódios cada. Com duração de 45 minutos, em média, não há uma relação entre eles. São independentes, com elenco, roteirista, diretor e cenários totalmente diferentes entre si – a única semelhança perceptível é a reflexão sobre o impacto da tecnologia em nossas vidas (o que, às vezes, nem é tão claro assim). Para Ana Bandeira, do blog Ligado em Série, os méritos da atração vão além de enredo ou qualidade audiovisual:
– Black Mirror é diferenciada porque nos leva à reflexão. Terminamos cada episódio pensando de alguma forma sobre a nossa relação com a tecnologia e como isso afeta nossas relações interpessoais. O que causa essa reflexão é a capacidade da série de apresentar tecnologias e modos de vida que ainda não vislumbramos, junto a comportamentos que já podemos ver.
Segundo seu criador, Black Mirror lida com as mudanças de estilo de vida dos últimos 10 anos, que fizeram as pessoas deixar de "andar pela rua e experimentar coisas para ficar olhando para um retângulo". O seriado é, portanto, sobre tecnologias, que vão de um dispositivo que grava todas as nossas memórias, ações e conversas a um mundo onde todo mundo vive enfurnado em uma espécie de academia com bicicletas ergométricas que geram energia para as coisas funcionarem _ a única forma de se livrar dessa prisão é vencendo um reality show musical.
Não há meio termo em Black Mirror, como argumenta Sheron Neves, professora de Storytelling e Transmídia na ESPM e na Unisinos:
– Como ouvi certa vez um crítico declarar, Black Mirror é uma série perturbadoramente genial e genialmente perturbadora. Questiona aspectos políticos e filosóficos da hipermodernidade, sem se apegar a finais felizes ou resoluções superficiais.
Entre os fãs, uma das discussões mais presentes questiona se uma temporada de 12 episódios não poderia diluir o impacto das reflexões propostas. Seja como for, é bom esperar pauladas ainda mais fortes do que as de quatro anos atrás. Com um mundo cada vez mais conectado, vigiado e invasivo, material não falta.
3 momentos de Black Mirror
O primeiro-ministro e o porco
Já no primeiro episódio da série, ocorre o que talvez seja o seu momento mais marcante. Em The National Anthem, o primeiro-ministro britânico é desafiado por um terrorista que sequestrou a princesa: ele exige que o político faça sexo com um porco ao vivo na TV, em rede nacional. Em setembro de 2015, desta vez na vida real, o jornal inglês Daily Mail divulgou parte de uma biografia não-autorizada do primeiro-ministro britânico David Cameron que diz que o político teria posto “partes privadas de sua anatomia” na boca de um porco morto. Tudo muito sórdido – mas quase premonitório.
A vida em um reality show
Em um futuro distópico, Bing (Daniel Kaluuya) e Abi (Jessica Brown Findlay) (na foto) estão entre as pessoas que vivem entre uma academia lotada de bicicletas ergométricas e salas minúsculas em que as quatro paredes são telas. Quanto mais pedalam, mais pontos acumulam. Ao alcançarem pontuações específicas, podem comprar programas de TV para suas telas particulares, comida artificial e ingressos para participar de um reality show musical. Os jurados desse programa, transmitido também nas academias, funcionam quase como juízes das arenas romanas: quem canta bem pode virar uma estrela e se libertar das bicicletas; quem tem o corpo perfeito pode protagonizar programas de sexo explícito; e quem não serve a esses interesses volta à academia. Alguma semelhança com a realidade?
O extremo do compartilhamento
No especial de Natal de Black Mirror (que tem no elenco Jon Hamm, o astro da série Mad Men), um dispositivo de realidade aumentada permite comunicação remota entre pessoas, quase como um Facebook implantado no corpo. Por meio desse aparelho, um profissional que ensina táticas de sedução guia um homem tímido e antissocial a uma festa, onde ele encontra uma mulher atraente que parece se interessar nele. Já na casa da pretendente, as coisas começam a ficar estranhas, e ela começa a falar sobre “vozes dentro da cabeça” e em suicídio, única maneira, segunda ela, de se livrar desse incômodo. Como disse o criador da série, Charlie Brooker, Black Mirror se passa no futuro, mas fala do presente.