Está numa das fotos que Max encontra. No verso da imagem que mostra os destroços de um acampamento, alguém escreveu:
Sharif, isso é o que restou da nossa casa, nosso esconderijo de um mundo que ficou insano. Você acha que foram os militares? Não, foram os locais. Temos que nos separar antes que eles nos matem.
O comentário de Max é certeiro e define o espírito do universo criado por George Miller e explorado em detalhes no jogo da Warner: "Nunca construa, nunca pare, nunca olhe para trás".
A foto é um dos itens que Max encontra em suas missões pela Terra Desolada. Além de fotos, ele também acha escritos – normalmente pedaços de diários ou bilhetes deixados para aqueles que ficaram para trás –, todos eles indicando a transição do mundo civilizado para o pós-apocalipse. Essa documentação é denominada de relíquia histórica e tem exatamente essa importância quase religiosa: é somente através dela que se tem uma vaga noção do que aconteceu.
Leia nas colunas anteriores:
Eu sei, "Mad Max" é só rock'n'roll (mas eu gosto)
Cinco blockbusters para jogar antes do ano acabar
Através das relíquias históricas – e um pouco da pouca conversa que Max consegue ter com quem ainda não virou comida ou troféu – é que se entende que não foi apenas pela falta de água ou combustível que a civilização ruiu (ou irá ruir, se você está me acompanhando aqui). Foi pela falta de vontade de continuar a tentar avançar.
Sem o mínimo necessário a que estávamos acostumados, voltamos a um estágio de primitivismo agudo, mas, de certa forma, confortável. Livre da obrigação de avançarmos em direção ao futuro – o que significa continuar a construir, seja empilhando tijolos, seja formando laços afetivos – nos vimos livres para avançarmos apenas em direção à morte, na mais clara e não menos irônica tradução do CARPE DIEM pós-moderno.
"Mad Max: Estrada da Fúria" debate a vida em cenário de morte
Relembre a evolução da saga de Mad Max nos cinemas
Porque futuro onde Max habita não é mais o lugar onde os sonhos se realizam, a cenoura que faz o cavalo continuar a jornada. Não há mais cenoura, tampouco cavalo. Nada mais brota do chão, os oceanos secaram, os animais morreram e o horizonte é de auto canibalização contínua de restos: pessoas se alimentando do que sobrou de outras pessoas, veículos construídos com pedaços de veículos, abrigos erguidos das ruínas do que foram cidades. O único resquício de natureza que sobrou foi areia. E algum petróleo – não à toa, substância que se forma de... restos. Restos de vida.
A realidade se desenha como o monstro do doutor Frankenstein: nada encaixa com nada e tudo funciona mais ou menos como deveria impulsionado exclusivamente pelo instinto de sobrevivência – o que pressupõe muito ódio e violência e quase nenhuma empatia. Logo, máquinas e abrigos apenas espelham o interior de seus arquitetos – que mesmo não esperando pacientemente a morte, em nada contribuem para a vida. Pelo contrário, a única herança que conseguem deixar é a de mais morte e degeneração – física e espiritual.
A evolução gráfica de Max é uma prova disso. Enquanto um Ezio Auditore ganha trajes mais suntuosos com o decorrer de sua aventura em Assassin's Creed, Max torna-se mais grosseiro, rude e feroz, cabelos e barbas compridos, rosto respingado de graxa e uma armadura feita de lixo. Seu veículo é um rebotalho de sucata enferrujada – insumo, aliás, do mais precioso, porque só através de sucata, de resto, que é possível manter o pouco de estrutura que resta em pé.
Mad Max – o filme, o jogo, os quadrinhos, a saga, a ideia, enfim – não é sobre o fim do mundo. É sobre o fim do que nos leva adiante como seres humanos. É sobre o fim da vontade em si, da resiliência, que pode (deve?) existir mesmo na maior das adversidades. Mas que sem ela, mesmo na melhor das condições, nada acontece.